30.10.24

OPINIÃO: Nós e os outros

Nos meus tempos de universitária vivia ao lado da Quinta da Serra, um bairro de barracas entretanto demolido no Prior Velho. Semanalmente ia ao coração do bairro, ao centro comunitário, ajudar as crianças a fazer os trabalhos de casa. Numa das primeiras semanas, fui momentaneamente avaliada no percurso e validada por dois moradores: “Deixa passar, ela é dos nossos, vai para o centro”. Em rigor, nunca fui “dos nossos”. Não conheci a pobreza extrema, o desespero de criar filhos sem água a correr nas torneiras, a sensação de que os sonhos e o tempo de uma criança a viver num bairro dito ilegal valem consideravelmente menos do que os de um colega de escola a viver num prédio a meia dúzia de metros. Mas percebi que o medo é a maior fronteira que colocamos entre nós e os outros, nas cidades e espaços físicos ou simplesmente nas escolhas que fazemos ao longo da vida. Quem acredita nos valores democráticos só pode defender intransigentemente o valor da vida, de todas as vidas, e as condições para que cada pessoa seja inteira nas suas possibilidades. Tocar nesse princípio essencial é manchar o que de mais claro e consensual é regulado pela Constituição e pelo sistema penal. E, ainda assim, temos deputados que desprezam esse valor – uma semana depois das alarvidades que proferiu, André Ventura não só assegurou ontem que não está arrependido, como insiste que a violência não terminará enquanto não tivermos “a dureza necessária”. Já muito se escreveu sobre as linhas vermelhas que o Chega pisou repetidas vezes. Mais difícil é perceber como se esvazia o circo. A queixa-crime entregue no Ministério Público é um passo relevante, mas politicamente o caminho é de pedras. Como é que se evita a polarização? Como se previne o erro de apropriação das causas da direita radical, como estão a fazer tantos partidos moderados na Europa? Como é que se combate a desinformação, o insulto e as bolhas de ódio nas redes? Andamos à procura das respostas, mas não desistir de procurar é já parte crucial do caminho. • Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 30 outubro, 2024