Entre o dia de hoje e a próxima quarta-feira é conveniente
não nascer na margem sul do Tejo. O encerramento das urgências de obstetrícia
nesta dimensão calamitosa é um sinal de que “o que nasce torto, tarde ou nunca
se endireita” e de que houve avidez na pretensão deste Governo em mudar todo um
processo que, estando a ser conduzido pelo anterior Executivo de António Costa,
tinha vantagens inequívocas. Desde logo na sua liderança.
O afastamento supersónico de Fernando Araújo e da sua
equipa, independentemente da vontade das partes, foi um erro crasso que um
balanço mais alargado julgará. E é também por isso que a mão que Luís
Montenegro e Marcelo Rebelo de Sousa quiseram ontem dar à ministra da Saúde,
Ana Paula Martins, foi apenas um penso rápido para algo que ninguém consegue
explicar: o agravamento da situação nas urgências e o desaparecimento sem
combate de António Gandra, actual director-executivo do SNS, facto para além de
insólito. Resta saber se o querem fechar num armário ou se é o próprio que não
encontra a chave para qualquer saída.
Em campanha, com pompa e circunstância e mais olhos do que
barriga, Luís Montenegro pediu 60 dias para resolver muitos dos problemas do
SNS através de um plano de emergência onde acabou por elencar 54 medidas
fundamentais. Num balanço ao dia de hoje, apenas uma dessas medidas está
concretizada: a criação da linha “SNS Grávida” pela introdução de um reenvio de
chamada na linha de atendimento geral. Enquanto isso, tendo em conta que o
concurso para a colocação de médicos deste ano ainda não sucedeu (o Ministério
da Saúde deixou os critérios de selecção e os prazos do processo nas mãos das
ULS) e muitos deles já foram “desviados” para o privado, há grávidas a serem
encaminhadas para fora dos hospitais públicos. A política do reencaminhamento
na Saúde parece estar a ser um caso sério, substituto integral de um plano de
emergência incumprível.
Para um Governo que tem conseguido segurar o seu capital
político com um equilíbrio surpreendente, acima da média e de muitas das
expectativas, a forma aparentemente alheada como gere o dossier na Saúde é um
erro grosseiro que pode mudar a percepção geral. Luís Montenegro esteve ontem
na inauguração da maternidade do Santa Maria, o maior hospital do país, o mesmo
hospital que hoje tem as urgências de ginecologia e obstetrícia encerradas. O
processo de destruição do SNS pode ganhar velocidade à medida que cresce a
dimensão do insólito, enquanto somos testemunhas de pensos aleatórios e
reencaminhamento de chamadas.
Miguel Guedes – Jornal de Notícias - 09 agosto, 2024