9.8.24

OPINIÃO: Reencaminhamento à nascença

Entre o dia de hoje e a próxima quarta-feira é conveniente não nascer na margem sul do Tejo. O encerramento das urgências de obstetrícia nesta dimensão calamitosa é um sinal de que “o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita” e de que houve avidez na pretensão deste Governo em mudar todo um processo que, estando a ser conduzido pelo anterior Executivo de António Costa, tinha vantagens inequívocas. Desde logo na sua liderança.
O afastamento supersónico de Fernando Araújo e da sua equipa, independentemente da vontade das partes, foi um erro crasso que um balanço mais alargado julgará. E é também por isso que a mão que Luís Montenegro e Marcelo Rebelo de Sousa quiseram ontem dar à ministra da Saúde, Ana Paula Martins, foi apenas um penso rápido para algo que ninguém consegue explicar: o agravamento da situação nas urgências e o desaparecimento sem combate de António Gandra, actual director-executivo do SNS, facto para além de insólito. Resta saber se o querem fechar num armário ou se é o próprio que não encontra a chave para qualquer saída.
Em campanha, com pompa e circunstância e mais olhos do que barriga, Luís Montenegro pediu 60 dias para resolver muitos dos problemas do SNS através de um plano de emergência onde acabou por elencar 54 medidas fundamentais. Num balanço ao dia de hoje, apenas uma dessas medidas está concretizada: a criação da linha “SNS Grávida” pela introdução de um reenvio de chamada na linha de atendimento geral. Enquanto isso, tendo em conta que o concurso para a colocação de médicos deste ano ainda não sucedeu (o Ministério da Saúde deixou os critérios de selecção e os prazos do processo nas mãos das ULS) e muitos deles já foram “desviados” para o privado, há grávidas a serem encaminhadas para fora dos hospitais públicos. A política do reencaminhamento na Saúde parece estar a ser um caso sério, substituto integral de um plano de emergência incumprível.
Para um Governo que tem conseguido segurar o seu capital político com um equilíbrio surpreendente, acima da média e de muitas das expectativas, a forma aparentemente alheada como gere o dossier na Saúde é um erro grosseiro que pode mudar a percepção geral. Luís Montenegro esteve ontem na inauguração da maternidade do Santa Maria, o maior hospital do país, o mesmo hospital que hoje tem as urgências de ginecologia e obstetrícia encerradas. O processo de destruição do SNS pode ganhar velocidade à medida que cresce a dimensão do insólito, enquanto somos testemunhas de pensos aleatórios e reencaminhamento de chamadas.
Miguel Guedes – Jornal de Notícias - 09 agosto, 2024