A ROMARIA DA COMENDA *
Nesta região e por todo o Alto Alentejo,
por terras da Beira e Extremadura Oriental, é a romaria a Nossa Senhora das
Necessidades uma das mais concorridas.
Pode computar-se em muitos milhares o
número de pessoas que, levados pela crença ou por mera diversão ou ainda
solicitadas por negócios de vários géneros, acorrem ao descampo em que, no
primeiro domingo de Setembro, se festeja ruidosamente a milagrosa padroeira da
freguesia da Comenda.
Vem de tempos imemoriais a devoção
destas gentes pela Senhora das Necessidades e a fama da importantíssima feira
realizada por ocasião da festa, também desde remotas eras chama ao ermo e
inóspito local, provindos dos mais remotos confins do país, toda a enorme
legião de negociantes de gados, quinquilheiros, ourives, etc., etc., não
faltando nunca a palreira, astuciosa e turbulenta fauna da ciganagem.
De Nisa, embora não tanto como há meio
século, ainda hoje a concorrência é numerosa e é interessante assistir à
partida ou regresso das inúmeras carretas (carros de bois) meio de transporte
de que preferentemente se serve a maioria dos romeiros.
Estes rápidos e cómodos veículos levam
todos um estético toldo, cujo esqueleto é formado por três ou quatro arcos de
salgueiro ou de ferro, atados aos fueiros ou apoiados nos tendais e por algumas
canas unindo os arcos, sustentam um lençol de estopinha ou panal de linhagem,
previdente defesa dos romeiros contras as inclemências solares ou contra a
surpresa de uma chuva intempestiva.
Às primeiras horas do serão de
sexta-feira anterior ao dia da festa, começam a chegar a Nisa, as carretas dos ratinhos e montezinhos. Aqui fazem a primeira etapa do difícil e prolongado
trajecto e, no Rossio ou em qualquer outro largo, logo improvisam bailes que,
entre constante alarido, só terminam quando de novo se põem a caminho.
Pelas oito ou nove da noite, as carretas
com os romeiros de Nisa. Dentro delas amalgamam-se dez e mais pessoas, até
caberem e, durante as intermináveis horas que o passo dos pachorrentos bois
leva a vencer os vinte e tantos quilómetros entre Nisa e a Comenda, as
gargantas das jovens não cessam de atirar à espessura da noite, a alegria
estrídula dos seus cantares.
As carretas da Comenda! Que recordações
ficam pela vida fora a tantos que, nos dois dias da romaria, neles continuam as
indílicas doçuras da lua de mel!...
Raros são os casadinhos de há pouco – e
em Nisa quase todos os casamentos se realizam em Agosto – que não vão à Senhora
das Necessidades. E creio suceder o mesmo na maioria das terras desta região.
É assim, com o capídinco fogo a estudar
no peito e com as labaredas incendiárias a fuzilar em olhos que são crateras de
desejo, na aspereza do terreno calcinado por um sol esbraseante, cujos raios os
toldos das carretas suavizam, ou à luz das estrelas, do alto a sorrirem aos
amorosos pares, a mocidade vive ali inolvidáveis horas que para sempre lhes
vincam na alma o traço rutilante duma dúlcida saudade.
As carretas da Comenda! Estou agora a
vê-las aos tempos longínquos da minha infância e recordam-me episódios vários,
entre eles um, conhecido da maioria dos nisenses e que a tradição dá como
sucedido há muitíssimos anos.
Foi o seguinte:
As famílias que projectam a digressão à
Comenda, reservam sempre para esta oportunidade o melhor naco de presunto, a
mais apetitosa rodela de lombo e outras virtualhas que lhes garantem, nos dois
dias de festa, suculentas e melhores refeições. Mas – pelo menos noutros tempos
era assim- o que não faltava nunca eram as tradicionais almôndegas de batata!
Ora, num certo ano, à hora da partida,
uma das tais carretas, cobertas com um alvíssimo toldo de estopinha, esperava
que nela tomasse lugar, um numeroso grupo de romeiros. A pacífica junta de
bois, garridamente ajaezada com largos e vistosos colares de reluzente
pregaria, ia acompanhando as pacientes ruminações com o tilintar compassado das monótonas esquilas.
Umas dez pessoas se instalaram no leito
da carreta sobre pequenas cadeiras, mas, antes disso, cda qual tratou de
acautelar, o melhor que pôde, o respectivo farnel, dependurando-o por meio de
ganchos de arame dos arcos de salgueiro que sustentavam o toldo.
E, com o carreteiro à frente, de
aguilhada ao ombro, iniciou-se a viagem e, com ela, o gargantear alegre e
ininterrupto das lindas moças que no carro seguiam.
Sob a alvura do toldo como pêndulos,
oscilavam, bamboleavam, as bolsas, as cestas, os canados, onde iam as provisões
para dois dias.
A noite estava escura, parecendo assim
maior a cintilação das estrelas. Tinham passado o Figueiró, a Coutadinha, a
Lage da Prata, a Lameirancha…
O carreteiro, farto de palmilhar à
frente dos bois, tomara assento da carreta e… cabeceava. Calara-se havia pouco
o orfeão e um dos componentes, solicitado talvez por um imperativo
gastronómico, pergunta à consorte:
- Ó Maria, sempre fizeste as almôndegas?
- Pudera!... – volveu a mulher. Vão ali
no canado.
E indicava-o sobre a cabeça, pendendo
dum dos arcos do toldo.
Entretanto, o carreteiro adormecera profundamente,
e os bois, enveredando livremente para uma profunda sob-roda, precipitaram nela
a pesada viatura com a respectiva carga. Por sorte, os animais pararam logo e
do desastre, que poderia ter graves consequências, não resultou para os
passageiros, sequer uma leve contusão.
Refeitos do susto, verificaram que
grande parte dos farnéis se encontravam dispersos pelo chão. O célebre canado
rebolara para uns dez metros do local sinistro, destapara-se com o choque e das
almôndegas, nem uma só ficara dentro.
Mas, apesar das trevas da noite, sobre a
areia branca do caminho destacavam-se, aqui e além, uns pequenos corpos
escuros. E, à pressa, marido e mulher trataram de apanhá-los, reenchendo com
eles o canado. Risotas, gargalhadas e toca para diante.
Ao amanhecer estavam na Comenda. Por
todo o vasto campo era o sussurro, o alarido, a confusão de sons e cheiros
característicos das feiras regionais. Pouco depois, a filarmónica do Gavião,
regida pelo mestre Viras, dava a alvorada com um extravagante passe-dobrado. Era
marcial, o clangor dos cornetins, só comparável ao estridente arreganho com que
a certa altura, calados todos os naipes, os executantes gritavam: - “ Avança
com ele, força!”
Toda a feira ria e os nossos romeiros,
bem dispostos, apesar dos percalços do caminho, resolveram atacar pela primeira
vez os viáticos opulentos.
Estendem, junto à carreta, as níveas
toalhas e, sobre elas colocam o pão, as marmitas, etc.
Lá está também o canado.
Uma voz – “Façam favor de se servirem
duma almondegazinha…”
Com o canado cingido pelo braço esquerdo
de encontro ao peito, a oferente tira a tampa de cortiça com a mão direita e
expõe o conteúdo à vista e cobiça dos circunstantes.
Mas – ó céus! – o maldito canado estava cheio
de almôndegas, mas não eram as que a boa mulher com tanto apuro tinha confeccionado!
Eram outras, que os jumentos da ciganagem sobre a areia tinha deixado e a
escuridão da noite não permitira distinguir das autênticas!!!
O homem ficou passado e a mulher
trespassada, mas os outros convivas iam rebentando a rir!...
J. Figueiredo
* Texto publicado no jornal "Brados do Alentejo (1933) e republicado no "Correio de Nisa" nº 7 - 2 Set. 1945