26.8.24

TEXTOS DE AUTORES NISENSES - Álvaro Pires

 
Estou velho
O Tio João Ratinho vivia naquela rua que lhe chamam agora a Rua da Missa.
Nunca percebi porque lhe puseram aquele nome. Mas também, diga-se em abono da verdade, nunca fiz o menor esforço para saber o porquê da Rua da Missa. Só se viviam ali muito beatos ou beatas, já que a igreja foi (e é) distante dessa rua. No outro ponto da aldeia.
Toda a rua era (e é) calcetada. De «cónhos", como sempre ouvi dizer. Daqueles redondos e de outras formas, mas bastante lisos e rijos. De cores variadas, discretas, mas bonitas. Uma variante de seixos, mas grandes. De difícil desgaste e portanto duradouros. Lembro-me das faíscas que saltavam dos canelos dos burros, machos, bois ou cavalos, quando por ali passavam. Como era (e é) uma rua estreita, tínhamos que nos encostar bem às paredes das casas, para não sermos pisados. Se fossem então os cavalos da Guarda Nacional Republicana, o melhor era fugir, tal o respeito e medo que eles impunham.
A casa do Tio João Ratinho era a última à direita. Tinha uma porta de madeira com um postigo. Não tinha janelas. Olhando lá para dentro só se via escuridão. Apesar de ter mulher, filhos e netos, para mim, catraio, o Tio João Ratinho naquele tempo vivia só. Ainda me recordo das pessoas - pequenos e grandes se meterem com ele, a que respondia invariavelmente com a sabedoria do povo. Quem vai vai, quem está... está!
Há três dias e duas noites que fugíamos deles. Ou eles de nós. Os ruídos que ouvíamos durante a noite e de dia - e só quem andou pelas matas de África sabe o que isso é - dava-nos indícios e que andávamos muito próximos uns dos outros. Só que na mata, ou melhor na guerrilha, tal como no jogo do gato e do rato, vence sempre aquele que for mais esperto. Ou então aquele que for mais bafejado pela sorte. Por outro lado, em mais de dois anos de guerrilha já era nossa obrigação saber o que por ali nos andavam a mandar fazer.
Tínhamos acabado de cruzar um trilho, com todas as cautelas que se impunham. A minha secção era a última, e eu, na bicha de pirilau, era o penúltimo. Com todo o cuidado e segurança, aguardei com o dedo no gatilho que o Soares se aproximasse mais de mim. De repente vejo o meu camarada mudar de semblante e sussurrar me baixinho: Meu alferes... eles vão ali! Ainda vi os últimos três... Instintivamente respondi. Ouve lá seu caralho - na tropa era assim - Quem vai... vai! Quem está… está!
Eles seguiram o seu trajecto e nós, o nosso.
O relatório do comandante da operação rezava assim por não ter sido possível localizar o IN...
           Nos almoços anuais o Soares recorda sempre este episódio. Ele mira a mulher, e os nossos olhos ao cruzarem-se deixam-se vencer por uma lágrima mais traiçoeira.
O Tio João Ratinho era uma pessoa de baixa estatura. Usava um barrete preto, que tombava sobre a nuca. Para a esquerda ou para a direita, não me recordo. Como também era usual naquela época, não dispensava a sua cinta preta, que enrolava à cintura para poder segurar as calças. Com um cós alto, sem passadores para o cinto, que à data não se usava. Do mesmo modo que as camisas tinham um peitilho, do qual saía uma presilha com uma casa na ponta para se abotoar nas ceroulas. De maneira a estas não caírem, como as calças - aos pés de quem as vestia.
Tinha um andar curvado, inclinado para a frente. Não sei como ganhava a vida, mas lembro-me de o ver cavar a horta do meu avô. Aos camalhões, muito bem feitos, todos iguais, como se a cada camalhão correspondesse uma quantidade certa de cavadelas. A distância que os separava era simétrica, como se ele andasse com uma fita métrica a separá-los. Usava umas polainas para não sujar as calças e as ceroulas. Suava muito enquanto cavava, ou porque a idade era avançada, ou porque o calor apertava. O suor caía-lhe pelas faces e principalmente pelo nariz.
Nos dias que ia cavar a horta do meu avô, era lhe oferecido o almoço ou o­ jantar. Nesse tempo o almoço era o jantar e o jantar era a ceia. Comia na mesma mesa que ainda hoje lá esta, mais empenada e com uma perna que já não é dela. Eu devia ser da altura da mesa e distraía-me a ver o Tio João Ratinho a comer. Quando cerrava os dentes, ou melhor as gengivas, para mastigar os alimentos, o seu queixo empurrava para cima os lábios e por sua vez estes faziam com que o nariz também subisse, de maneira que o queixo, boca e nariz, subiam e desciam em uníssono. Subiam todos, quando ele tentava mastigar e desciam também todos, quando ele abria a boca.
Sempre gostei de observar como comem os outros. A semana passada, como todos os sábados, almocei com a minha mulher num restaurante habilmente decorado com muitos espelhos pela sala. De variadas formas e colocados em várias posições.
Ficámos numa mesa onde se podia avistar toda a sala e nomeadamente a entrada e saída do restaurante. Mas também não foi preciso escolher a mesa porque de modo que os espelhos estavam colocados, dava perfeitamente para ver tudo. E vi.
No meu lado esquerdo estava um espelho que mostrava como um cliente comia. Tal e qual como o Tio João Ratinho. O queixo, a boca e principalmente o nariz, moviam-se num sobe e desce desenfreado e em conjunto.
* Álvaro Pires