Ano após ano, no período estival, os trabalhadores e
pensionistas portugueses que passam a vida a consumir-se para conseguir, quando
conseguem, pagar as contas do mês, são inundados com as notícias dos lucros
enormes que os seus sacrifícios e exploração permitiram às grandes empresas e
grupos económicos arrecadar. Esses lucros são favorecidos por políticas
desenhadas a partir do Estado. Os do primeiro semestre de 2024 aí estão, da
banca às energéticas, passando pela grande distribuição: «Lucros dos bancos dão
salto olímpico: ganham 2,6 mil milhões até Junho» (Eco, 1 de Agosto); «EDP dispara
lucros em 75% para 762 milhões no primeiro semestre» (Jornal de Negócios, 30 de
Julho); «Sonae fecha semestre com recordes nas vendas e no investimento, e
crescimento de 14% nos lucros» (Expresso, 30 de Julho). Mesmo a dona do Pingo
Doce, com menores lucros… «lucrou 253 milhões de euros» até Junho, com as
vendas a aumentarem 12,3% e o recuo a ter como explicação um investimento:
«Fundação de 40 milhões encolhe em 29% os lucros da Jerónimo Martins no
primeiro semestre» (Eco, 24 de Julho).
As grandes empresas a operar em Portugal não querem
mais medidas fiscais, apoios e incentivos públicos para aumentar salários, mas
para ter mais lucros e remunerar mais o capital accionista. Se as políticas
governativas que lhes favorecem os lucros — sem verdadeira contrapartida
fiscal, salarial ou de preços —, tivessem capacidade para acabar com os baixos
salários, então há muito que estes teriam aumentado. Mas este argumento é
sempre usado pelos neoliberais para favorecer com dinheiro público as grandes
empresas: salários aumentados jorrariam, por milagre, das contas dos ricos
empresários para os bolsos dos trabalhadores pobres e remediados. Nada de novo.
A economia do trickle-down sempre foi um dispositivo da propaganda que promete
um «escorrer para baixo» que nunca acontece.
Pouco tem mudado, na prática e na comunicação dos
neoliberais. Apoiados na bem rodada arquitectura político-institucional da
União Europeia e do euro, vão misturando uma real opacidade dos textos de
política económica com uma aparente clareza da comunicação. O caso do «Programa
Acelerar a Economia — Crescimento, Competitividade, Inovação &
Sustentabilidade» (1), apresentado pelo governo de Luís Montenegro no dia 4 de
Julho, é paradigmático desta dupla estratégica de política e de comunicação.
O objectivo do Programa, apresentado também pelo
ministro da Economia, Pedro Reis, e pelo ministro de Estado e das Finanças,
Joaquim Miranda Sarmento, descreve-se com alguma facilidade. Pelo menos na
perspectiva de quem olha para a economia como as escolhas que organizam a vida
material e procura responder a perguntas como quem sai beneficiado e quem sai
prejudicado, ou o que é incluído ou fica de fora. O que aqui se acelera é a
governação neoliberal. O ministro da Economia não o esconde: este Programa «vem
da economia e vem das empresas». Vem dos grandes grupos nacionais e das
multinacionais, com a transposição da directiva europeia que lhes reduz a
tributação fiscal mínima a 15%. Vem das grandes empresas, e não das cerca de
40% que nem pagam imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC).
Estas últimas não beneficiam das borlas fiscais dadas às mais ricas neste
imposto, cuja taxa baixará até 2027 para 15%, nem de outros benefícios fiscais
«à contratação, à capitalização e ao investimento» das empresas. Com estas
ofertas, o governo dá dinheiro que seria fundamental nos serviços públicos
essenciais para contratar médicos, enfermeiros ou professores. Que seria mais
bem usado para investir no parque habitacional público, nos aumentos salariais
na função pública, nas prestações sociais, na mobilidade, na ferrovia, na
recuperação de um serviço postal público, na transição energética…
Mas o «Programa Acelerar a Economia» não é sobre nada disto. Não por
acaso, as fontes de inspiração invocadas, além dos privados consultados, são o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e um estudo recente da Fundação Francisco
Manuel dos Santos que, pasme-se, «chegou exactamente às mesmas
conclusões» que o governo, diz Pedro Reis, quanto ao peso do IRC e ao papel
desta «tributação excessiva» nos baixos salários (não é disto que a maioria das
empresas se queixa, mas as que se queixam são as que mais lucros arrecadam…). O
governo, abusando do léxico liberal actual para descrever em 20 palavras os «20
Desafios da Economia Portuguesa», associa a cada uma um símbolo gráfico que
parece um «abre-te sésamo» para tópicos igualmente aprofundados. Mas nem assim
esconde o que opta por ignorar (como os sectores produtivos tradicionais), o
que trata com grande detalhe em jargão inglês (como operações de concentração,
incentivos financeiros e fundos de investimento), e o que inclui tendo pouco
para dizer, mas anunciando comissões e grupos de trabalho (como a reindustrialização
sustentável em 2045).
Por detrás da linguagem usada, capaz de fazer
sentir ao leitor de esquerda um certo «choque civilizacional», fica o
essencial. Além das alterações fiscais para as empresas (IRC, IVA de caixa), o
Programa faz uma aposta particular no turismo (sector cujo excesso trouxe
baixos salários, precariedade e aumentos brutais da habitação e dos preços para
os residentes), na sustentabilidade do mar (lixos marinhos, acidificação do
oceano) e nas indústrias da defesa, que são também uma aposta europeia, com o
reforço do inevitável «capital humano» e de instrumentos científicos e
tecnológicos, em parceria com instituições do ensino superior, favorecendo até
que docentes e investigadores participem dos órgãos sociais ou sejam
accionistas de start-ups — a bem da inovação, claro. Na aeronáutica, no calçado
e fardamento, nos sistemas informáticos de defesa? A «Marca Portugal» vai vestir
farda, mas com «talento»…
O «Programa Acelerar a Economia» preocupa-se de
facto com «inovação», «empreendedorismo» e «atracção de talentos», mas nada diz
sobre precariedade, pobreza ou desigualdades. Apenas uma vez fala de salários,
justamente a propósito da tal miragem do efeito da redução de IRC, mas esse é o
refrão mais repetido na comunicação dos membros do governo: menos IRC traria
mais investimento e crescimento, que traria melhores salários. O
primeiro-ministro até desenvolveu o argumento quando foi às «Millenium Talks
Lisboa», a 8 de Julho: as medidas do «Programa Acelerar a Economia» «são
sobretudo para os pobres, são para transformar os que vivem numa situação de
pobreza numa situação mais privilegiada financeiramente»; e a «ligação entre as
empresas, o sistema financeiro e o poder político, a administração é
obrigatória». Já agora, sobre o anfitrião, o Millenium BCP: «Lucro do BCP sobe
14,7% no primeiro semestre para 485 milhões de euros» (Eco, 31 de Julho).
Quem andar iludido com a natureza profundamente
neoliberal da aceleração em curso, e que estará plasmada, o governo não o
esconde, no Orçamento do Estado para 2025, é só olhar para estas ligações entre
sector financeiro, poder político e grandes empresas.
Sandra Monteiro in www.lemondediplo.com
(1) O
documento completo e a apresentação resumida estão disponíveis em www.
portugal.gov.pt