27.8.24

OPINIÃO: O teto de vidro do azedume

Na última noite da convenção democrata, as sobrinhas de Kamala Harris protagonizaram um momento divertido, carregado de significado político. Subiram ao palco para ensinar a pronunciar corretamente o nome da candidata presidencial, que tem sido ridicularizado por Donald Trump. Pegando nas armas do adversário, que enfatiza a estranheza do nome para acentuar a diferença e racializar os ataques, a equipa de Kamala desmascara a intolerância e vinca a riqueza dessa diversidade.
Nos últimos dias foi muito sublinhada a possibilidade de a atual vice-presidente quebrar várias barreiras, sobretudo o teto de vidro que nunca permitiu a uma mulher ocupar a Sala Oval. O efeito dessa eventual novidade não deixa de ser inspirador noutras geografias (incluindo a nossa, onde também nunca uma mulher foi chefe de Estado e onde houve um recuo no número de deputadas eleitas nas últimas legislativas), mas o género não vale por si só. Olhar para o que irá acontecer nos Estados Unidos importa devido às políticas e importa por algo que parece menos relevante, mas conta: a forma de estar na vida pública.
Nos milhares de artigos escritos pelo mundo, Kamala tem sido descrita como a candidata da alegria, da esperança, da festa democrática, do humor. Rodeada de figuras carismáticas como o casal Obama ou a apresentadora Oprah Winfrey, mostrou-se capaz de estilhaçar o teto de vidro de azedume que tem asfixiado o ambiente político e social – nos Estados Unidos e não só. Com conflitos à escala mundial a sucederem a uma pandemia global, conflitos geracionais causados pelo combate climático, inflação e incerteza a minarem a evolução das economias, xenofobia e extremismo a crescerem em oposição à tentativa de construir sociedades mais equitativas e inclusivas, não falta terreno fértil para políticos zangados.
Tenho sempre na mesa de trabalho um lápis que me foi oferecido num momento particularmente duro, com uma frase de Almada Negreiros, “A alegria é a coisa mais séria da vida”. Num mundo com tantas razões para o pessimismo, tenho-a como cada vez mais certeira, até porque, como justificou o artista, “alegria é saber muito bem por onde se vai”. A mudança que une energias e pessoas é a que se alimenta de esperança e perspetiva algo melhor. A alegria e a ternura são não apenas assuntos sérios, mas verdadeiros atos de coragem.
Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 25 agosto, 2024