Na última noite da convenção democrata, as sobrinhas de
Kamala Harris protagonizaram um momento divertido, carregado de significado
político. Subiram ao palco para ensinar a pronunciar corretamente o nome da
candidata presidencial, que tem sido ridicularizado por Donald Trump. Pegando
nas armas do adversário, que enfatiza a estranheza do nome para acentuar a
diferença e racializar os ataques, a equipa de Kamala desmascara a intolerância
e vinca a riqueza dessa diversidade.
Nos últimos dias foi muito sublinhada a possibilidade de a
atual vice-presidente quebrar várias barreiras, sobretudo o teto de vidro que
nunca permitiu a uma mulher ocupar a Sala Oval. O efeito dessa eventual
novidade não deixa de ser inspirador noutras geografias (incluindo a nossa,
onde também nunca uma mulher foi chefe de Estado e onde houve um recuo no
número de deputadas eleitas nas últimas legislativas), mas o género não vale
por si só. Olhar para o que irá acontecer nos Estados Unidos importa devido às
políticas e importa por algo que parece menos relevante, mas conta: a forma de
estar na vida pública.
Nos milhares de artigos escritos pelo mundo, Kamala tem sido
descrita como a candidata da alegria, da esperança, da festa democrática, do
humor. Rodeada de figuras carismáticas como o casal Obama ou a apresentadora
Oprah Winfrey, mostrou-se capaz de estilhaçar o teto de vidro de azedume que
tem asfixiado o ambiente político e social – nos Estados Unidos e não só. Com
conflitos à escala mundial a sucederem a uma pandemia global, conflitos
geracionais causados pelo combate climático, inflação e incerteza a minarem a
evolução das economias, xenofobia e extremismo a crescerem em oposição à
tentativa de construir sociedades mais equitativas e inclusivas, não falta
terreno fértil para políticos zangados.
Tenho sempre na mesa de trabalho um lápis que me foi
oferecido num momento particularmente duro, com uma frase de Almada Negreiros,
“A alegria é a coisa mais séria da vida”. Num mundo com tantas razões para o
pessimismo, tenho-a como cada vez mais certeira, até porque, como justificou o
artista, “alegria é saber muito bem por onde se vai”. A mudança que une
energias e pessoas é a que se alimenta de esperança e perspetiva algo melhor. A
alegria e a ternura são não apenas assuntos sérios, mas verdadeiros atos de
coragem.
Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 25 agosto, 2024