27.2.23

OPINIÃO: A vida não pode ser um negócio

Quando ouvimos falar em dádiva de sangue, pensamos nos nossos dadores, nas colheitas agendadas, nos profissionais de saúde e claro, naqueles voluntários abnegados que dão parte do seu tempo para dar apoio e para promover a dádiva de sangue.
Contudo, esta realidade é diferente nos quatro cantos do mundo. Se temos países onde a dádiva tem um grande apoio e desenvolvimento, como é o caso da nossa vizinha Espanha, outros há, que ainda estão a dar os primeiros passos. O certo, é que em todo o mundo existem doentes ou acidentados a necessitarem de sangue, ou dos seus componentes sanguíneos. A dádiva não tem fronteiras físicas, mas tem necessidades.
Infelizmente a dádiva de sangue benévola, altruísta, não remunerada como acontece em Portugal, não sucede assim por esse mundo fora. É triste percebermos que na Ásia e América Latina, a promoção da dádiva de sangue, está muito longe do que preconiza a OMS, que incentiva os Estados a promoverem a dádiva não remunerada, mas, também, nada diz em relação ao movimento associativo, que garante sangue seguro para todos. Mas, mais estranho, é perceber que os países do norte da Europa, pouco se importam com esta solidariedade.
Segundo a ONU, mais de três dezenas de países não têm condições para testar e garantir a dádiva. Portugal é uma boa referência, graças ao movimento associativo e ao SNS que dão o suporte a esta causa. Hoje, já aproveitamos melhor o plasma dos nossos dadores e neste campo, é urgente investir mais. Do Canadá, chega a boa notícia da abertura de três centros de colheita de plasma por aférese. Ao contrário da China, o Canadá recusa assim, entrar no criminoso comércio deste componente sanguíneo em que os EUA dominam. Espanha, também dá o exemplo e já têm unidades móveis para colheitas por aférese.
Nesta área, o mundo está muito desequilibrado e se do Congo Democrático, temos notícias de dificuldades, porque chegam a faltar bolsas para as colheitas de sangue, na Argélia assistimos a um aumento de 9.4% nas dádivas, que se devem ao aumento dos Centros de Transfusão de Sangue nesse país e às medidas de segurança, promovidas pelo Ministério da saúde argelino. Como motivo de preocupação mundial, regista-se o facto de as empresas privadas estarem a ganhar terreno, questão que deve ser objeto de discussão na Comissão Europeia, tendo em vista as devidas alterações na Diretiva Europeia sobre sangue, tecidos e células.
A dádiva é um direito humano fundamental e um dever da sociedade; a dádiva não remunerada é a via para evitar sangue contaminado; o sangue liga-nos a todos. Os sinais são preocupantes, em Portugal reduzem-se e cancelam-se colheitas, dadores são impedidos de doar por falta de pessoal, ou de meios. Não podemos permitir que se destrua um trabalho de décadas e que se regresse ao tempo em que morriam pessoas por falta de sangue. O IPST precisa de mais meios e o movimento associativo tem que ser mais apoiado.
O futuro, ninguém sabe, em Portugal, o IPST prepara novos mecanismos, enquanto na Europa, trabalha-se uma nova diretiva europeia para a área do sangue. Existem novas realidades que contemplam necessidades e preocupações diferentes. Em Portugal, anualmente registam-se 60 mil novos casos de cancro, que requerem mais dádivas. Na Europa, anualmente mais de 5 milhões de doentes recebem aproximadamente 24 milhões de componentes sanguíneos[1]. A evolução da técnica cirúrgica e os recursos disponíveis conduziram a uma diminuição significativa de perdas hemorrágicas, um importante progresso.
No passado dia 14 de novembro, a comunidade muçulmana sufi no Mali promoveu uma colheita a favor dos soldados feridos em combate. A verdade é que estão a salvar vidas e isso é importante, mas este tipo de prática, a dádiva dirigida deve ser alargada por uma dádiva universal que tem de ser além de benévola, altruísta e anónima. É importante a criação de reservas e garantir componentes sanguíneos para todas as situações.
No mundo, é importante seguir os bons exemplos, mas também transmitir estilos saudáveis de vida de forma a termos mais dadores e menos recetores. As autoridades mundiais devem opor-se a que se faça negócio com o sangue e com os seus derivados. Os políticos e os governantes têm o dever de ter mais atenção para esta causa; a vida não pode ser um negócio.
* Paulo Cardoso in Rádio Portalegre - Desabafos - 24.2.2023

[1] in Annual Summary of the Reporting of Serious Adverse Reactions and Events, 2015, European Commission