A esta hora
Ele pergunta quem é e só depois abre a porta. Do lado da rua ouve-se o noticiário da televisão em volume alto.
-Tu, a esta hora?
O quintal está escuro. As galinhas sossegam na capoeira, duas couves crescem ao lado do tanque da roupa, estão mais altas que eu. No estendal, jaz uma fileira de sacos de plástico que secam de boca para baixo, parecendo morcegos domésticos. A mangueira da rega está enrolada na parede, um fio de água sai da sua boca. Os canteiros estão com ervas, ainda há jarros, brincos-de-princesa, hortenses, algumas rosas.
Sento-me ao seu lado no sofá. Na cadeira da sala tem pendurado o casaco de ir à rua. Percorro a casa que ainda está como me lembro dela, o autoclismo é puxado a cordel, a torneira pinga ritmadamente para a cuba de pedra, o bloco de notas com os números de telefone sobre o móvel do corredor, fotografias antigas (parece Delft escrito na montra da loja atrás da minha imagem). Lembro-me do peso do gato sobre os cobertores e m cima das minhas pernas.
Houve um dia em que me levou dentro de um carrinho de mão, estrada acima. E fomos à horta, comemos chouriço, tirámos água do poço com um balde de metal, deixou-me puxar a corda.
- Vou contigo lá fora.
Ele fica do lado de lá do portão e acena-me. Vejo-o entrar em casa pelo espelho retrovisor. Faço as contas (pelos dedos das mãos, às vezes ainda uso os dedos das mãos) da hora a que conseguirei chegar ao meu destino.
Escrevi no meu caderno uma frase que alguém disse e que não me sai da cabeça, que viver é escrever sem borracha, sem poder apagar. Se não me atrasar ainda chegarei de dia, são apenas quatro horas de viagem. E penso que talvez um dia deixe crescer o cabelo para o poder entrançar.
* Ana Costa Ribeiro - * Enfermeira, escritora in O Montesinho - Agosto 2009