5.2.23

OPINIÃO: Os não elegíveis

Duas histórias, o mesmo aperto: uma família de classe média com três filhos menores perdeu a casa arrendada num incêndio e anda, há dois meses, num pingue-pongue nada edificante entre Santa Casa da Misericórdia e Câmara de Lisboa para não ter de ir morar para a rua; outra família, também de classe média, também de Lisboa, tem três semanas para abandonar o apartamento arrendado porque o senhorio vai vender a casa. O filho, atleta paralímpico, já representou Portugal em diversas provas. Mais uma vez, Santa Casa e autarquia lisboeta dividem protagonismo e ausência de respostas.
Podíamos pegar nos testemunhos de Lívia Camargo e Paulo Faria, ou no relato dos Netos, e multiplicá-los. Porque estas famílias engrossam a fileira dos novos pobres, gente trabalhadora que aufere rendimentos médios mas não consegue suportar os custos de uma habitação. Em ambos os casos, nenhum dos agregados é elegível para beneficiar automaticamente de uma casa municipal, sendo forçado a concorrer a programas de apoio a renda acessível, cuja celeridade é contrária à urgência de um teto. Tremenda perversão esta: são carenciados, mas não o suficiente.
Ainda que o direito à habitação esteja consagrado na Constituição, estamos hoje num ponto de rutura, tanto em termos de oferta habitacional/especulação imobiliária, como de ausência de respostas sociais a este exército cada vez menos silencioso de portugueses não elegíveis para ter uma habitação. As casas públicas representam apenas 2% do alojamento total do país e não tivesse havido o esforço dos municípios nos últimos 30 anos, no sentido de duplicar a oferta, o cenário seria ainda mais desastroso. A periferia do Porto e de Lisboa começa também a sentir os efeitos deste tsunami, com os preços a escalarem para valores impensáveis. Urge, por isso, definir uma estratégia musculada, que não fique dependente da bondade do mercado. Mas para isso o Estado terá de envolver os privados, porque são eles que ditam as regras. Se nada fizermos, não serão apenas as famílias de hoje a ser privadas de um teto, serão os adultos de amanhã que pura e simplesmente vão desistir de olhar para Portugal como a sua casa.
* Pedro Ivo Carvalho in Jornal de Notícias - 4.2.2023