A Igreja Católica portuguesa deu ontem passos significativos que implicam uma retificação da sua posição sobre os casos de pedofilia. Passou da negação da natureza e dimensão do problema para a criação de uma comissão que visou investigar possíveis vítimas desde 1950, uma atitude corajosa e de transparência que sintoniza a Igreja portuguesa com as exigências do Papa Francisco na abordagem a uma questão tão espinhosa para todos: em primeiro lugar para as vítimas e as suas famílias, em segundo para a Igreja e finalmente para toda a sociedade.
Em vez de refletir se as 4815 vítimas são poucas ou muitas, o importante é que este foi um ato libertador para muitos que sofreram os abusos, mesmo que grande parte das vítimas já não vá receber nem o perdão nem a possibilidade de condenação de quem prevaricou, devido à prescrição legal dos crimes.
A comissão independente recebeu 512 testemunhos validados de vítimas de abuso sexual de menores na Igreja Católica e enviou 25 casos para o Ministério Público. Qualquer que fosse o resultado do relatório da comissão liderada por Pedro Strecht, ele seria sempre de louvar porque a Igreja percebeu que o silêncio de décadas nos seminários, confessionários e outro lugares negros onde foram perpetrados os crimes deveriam ser expostos. Mais do que isso, para além de uma condenação eclesiástica, ela deveria passar para a barra dos tribunais laicos. Uma atitude de coragem dos altos dignitários da Igreja portuguesa que revela o compromisso dos católicos em condenar crimes tão hediondos. Apesar de o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, não ter dito o que vai fazer a Igreja perante a informação recolhida, fica ainda a interrogação. Seja em relação a possíveis indemnizações às vítimas, seja como a Igreja reagirá perante os abusadores que ainda estão no seio da instituição.
* António José Gouveia in Jornal de Notícias - 14.2.2023
** Cartoon de Vasco Gargalo