Muitas vezes a roda da vida leva-nos para encontros e desencontros. A Festa que eu sempre frequentei e onde sempre me senti bem. A Festa que não devia acontecer este ano. Estamos desencontrados.
As laranjeiras estão altas. Há também pereiras e uma camélia enorme. Uma carroça de bois, uma adega e uma casa térrea. Ao fundo, a terra sempre cultivada, uma eira e uma casa pequena. José e outros, levantam-se cedo. Deitam a semente à terra. Depois desaparecem. Encerram a porta da casa pequena. Os pássaros pintam o céu. Não há que ter medo. Nunca se ouviu falar que um pássaro fosse bufo. José e os outros, constroem textos com letras de chumbo. Dobram papel fino. Rolam rolos vestidos a tinta negra. As horas passam e o homem da bicicleta descasca uma laranja. Saboreia. Bebe água do poço. A porta abre-se. José abraça o homem da bicicleta. No quadro, com um arame improvisado, um cesto com couves é pendurado. Cai a noite e a bicicleta rola. A lua ajuda.
Ainda o sol não deu os bons dias e já uma matilha de esfarrapados se faz à rua. Trabalhadores de fábrica. Trabalhadores de terra. Pelas pedras espreitam papéis. Saíram clandestinamente do ventre das couves. No adro da igreja espreitam papéis. Nos paralelos da calçada espreitam papéis. São amachucados, escondidos em sapatos ou algibeiras. E quando for possível, longe dos olhares dos abutres, grupos de homens e mulheres rodeiam o papel fino tingido a letras de chumbo. Quem souber juntar letras é o eleito para ler. É necessário aumentos na jorna. Melhores condições na fábrica. Escola para os filhos.
José e os outros descansam os corpos em colchão de palha. Os cães ladram. A porta é arrombada. A polícia de defesa do estado intervém para bem da nação. Aos socos e pontapés, levam José e os outros para as salas bafientas com Salazar e Carmona a olharem. Sorrisos de hiena estampados em molduras pesadas. José e os outros são espancados, torturados. O hálito do agente é ácido. Quem vos mandou fazer os avantes? Foram vocês que montaram a porra da tipografia clandestina? Aquela merda veio de Moscovo? Quem são os vossos chefes? Quem colocou a merda dos avantes na aldeia? Filhos de uma cabra. Comunas de merda. Não vão ficar cá para contar a história.
José e os outros não abriram a boca. Cada soco, cada estalada, cada hora de estátua eram anos de silêncio. Levem os gajos. Só comem daqui a três dias. Odeio comunas.
Pela manhã os avantes estavam novamente na vila. O agente de hálito ácido volta a espancar José e os outros. Se não falam, mato-vos. Silêncio e silêncio. José e os outros foram libertados para sempre. De vez. Em abril.
José e os outros continuam a gostar de laranjeiras. Por vezes ainda lançam a semente à terra. Não perderam o jeito nem o gosto. Muito menos a firmeza. José, os outros e tantos outros, lutaram pela liberdade. Combateram como ninguém a escuridão. O medo. A opressão. Lutaram para chegarmos todos até aqui. Um país livre. Livre como o vento ou como um catavento. Um país também de ingratidão. José e os outros resistiram aos socos e à estátua. À fome e à sede. Ao agente de hálito ácido. Também resistem agora. O hálito anda no ar. Cheira-se. Sente-se. Na conversa de café. No comentador limitado. No líder (adoram esta palavra) bafiento. No truque. Na mentira. Na manipulação. Até no pedido de desculpas. Sente-se o agente de hálito ácido a querer pendurar os sorrisos de hiena.
José e os outros, estão cá para os enfrentar. E há muitas pedras para colocar os papéis. Não julgue o agente de hálito ácido que desta vez será fácil. Talvez até seja impossível, enquanto houver quem teime em lutar.
O agente de hálito ácido é todo ele ódio. Tem sede de vingança. José e os outros, pintam letras às cores na Quinta da Atalaia. Não perderam a firmeza. Lutam novamente contra o medo. Pela liberdade. O agente de hálito ácido semeia calhaus em terra de pandemia.
Conheço o José e os outros. A todos eles, dou um abraço de gratidão maior que o mundo. Muitas vezes a roda da vida leva-nos para encontros e desencontros. Como agora. A Festa do Avante. A Festa que eu sempre frequentei e onde sempre me senti bem. A Festa que não devia acontecer este ano. Estamos desencontrados. Mas os dias vão passando e afinal, os socos, as bofetadas, a estátua, as torturas ainda não acabaram. O agente de hálito ácido ainda grita – morte aos comunas! Não posso esquecer o lado da barricada em que estou. Pela amizade e pela solidariedade com homens e mulheres íntegros, José, os outros e tantos outros, estarei na Quinta da Atalaia. No cimo da roda gigante levantarei o punho, em silêncio, como tu José, contra o medo e pela liberdade.
Adriano Miranda - Público - 3/9/2020