3.6.19

OPINIÃO: Filhos do silêncio

A Igreja Católica trata o assunto como se fosse do foro interno. Uma norma do direito canónico que impõe aos padres "continência perfeita e perpétua". Um "dom", como ainda recentemente insistiu o Papa Francisco, confirmando não estar disponível para rever a posição sobre o celibato. A total disponibilidade para cumprirem a missão é o principal argumento usado para fundamentar o valor dessa entrega exclusiva.
Só que, como muitos outros problemas que têm contribuído para corroer internamente a hierarquia católica e afastar quem não se revê nas suas incoerências, por detrás desta discussão estão milhares de pessoas que sofrem com a opacidade sobre esta matéria. Filhos nascidos de amores ou aventuras proibidos e por isso classificados como pecado.
Em 2014, a ONU pediu ao Vaticano que fizesse um levantamento do número de filhos de padres espalhados pelo Mundo. Até hoje, continua a não haver respostas. A Conferência Episcopal Portuguesa alinha pelo mesmo registo evasivo e remete o assunto para a esfera de autonomia de cada bispo diocesano.
Ao contrário da pedofilia, que configura um crime, neste caso as questões levantadas são de ordem ética e moral. Nesse plano haverá diferentes perspetivas e opiniões e o celibato está longe de colher consenso dentro da própria Igreja. Mas o resultado do silêncio é o sofrimento de quem cresce sem pai ou com dedos apontados. O inverso da defesa da dignidade humana que o Vaticano proclama e deveria preservar.
O catolicismo resistiu a dois mil anos de erros graves, crimes e imperfeições. Mas demora sempre demasiado a reconhecê-los. É aí que mais falha. Na forma como tenta ignorar as fragilidades, evitando-as até serem insustentáveis. Quando tantas vezes bastaria admitir a humanidade dos que a constituem, colocando-se ao lado das pessoas e nunca acima delas.
Inês Cardoso - Jornal de Notícias - 1/6/2019