9.6.19

NISA: Contos de Montes Ermos


O Papo- Seco
O contrato-tipo, que a Câmara de Montes Ermos assinava com os regentes que contratava para a sua banda de música, dizia preto no branco: Artigo 17º - O regente é obrigado a dar, pelo menos, dois ensaios por semana e, além desses, todos os que as necessidades de serviço aconselharem”. E, logo, no parágrafo único do mesmo Artigo 17º estabelecia que o regente tinha, também, a seu cargo, “ensaiar o Coro da Câmara, obrigando-se a apresenta-lo, no ultimo domingo de cada mês, abrilhantando a Missa Solene do meio-dia”.
Bizarra, no mínimo, esta cláusula. Mas Montes Ermos eram isso mesmo.
Ao apresentar, em cada actuação do Coro da Câmara, uma antífona, um salmo ou um motete que, expressamente, compunha para o acto, desde a primeira hora, Mestre Horácio tornara, porventura, mais bizarra, ainda, esta cláusula.
Num breve parêntesis, diga-se, de passagem, que, pelo menos, uma vez por mês, a vetusta igreja medieva era pequena para comportar a afluência de fiéis. E não só.
Foi num desses domingos que conheci o Papo-Seco.
Nunca descobri a razão por que lhe chamavam “papo-Seco”. Em linguagem de Montes Ermos, um Papo-Seco é um indivíduo apurado no vestir, um janota, um casquilho, um peralta, um elegante, e ele não passava de um maltrapilho. Uma figura tosca, atarracada, andrajosa, com um sorriso imbecil numa cara de idiota. Contudo, foi o mais extraordinário caso de intuição musical, que conheci, até hoje. Era um maltesão, um desses vagabundos que palmilham as estradas sem sombra do Alentejo, batem á porta de todos os montes, a quem os cães ladram, ao vê-los passar e de quem os garotos se escondem, sempre, receosos. O Papo-Seco, contudo, era um paz d´alma, um pobre diabo inofensivo que, sempre, respondia com um sorriso a um insulto. Persistente, no seu périplo interminável, aparecia, em Montes Ermos, invariavelmente, por ocasião das festividades religiosas de Verão a que se associava, sem convite e sem cerimónias, fazendo alarde de uma voz de tenor pouco vulgar.
Para a missa solene daquele quarto domingo de Agosto, Mestre Horácio compusera e ensaiara um “Tantum Ergo”, cuja estreia o próprio Coro da Câmara caprichara em anunciar, com grande antecedência. Resultado: expectativa, ansiedade e a igreja sem lugar onde coubesse mais um alfinete.
A organista fizera soar, apenas, o primeiro acorde de introdução, quando um murmúrio alastrou por entre todo o coral. Mestre Horácio voltou-se e, por cima dos óculos, viu um quadro que desejara não ter visto. Recostado no vão da porte de acesso ao local destinada aos cantores, estava o Papo-Seco. Descalço, andrajoso e sujo, como sempre, mas mostrando os dentes, inexplicavelmente brancos, naquele sorriso tranquilo, ingénuo e simples, que todos lhe conheciam. Mestre Horácio hesitou, por um momento, mas confiou em todos os santos da sua devoção e o “Tantum Ergo” começou a ouvir-se. No final da primeira estrofe, o alívio foi geral. Contrariamente ao que era costume o Papo-Seco não se associara ao Coro. A um canto, e parecendo alheado de tudo, permanecia imóvel, de olhos postos no altar-mor, lá longe, no outro extremo da nave. O órgão fez ouvir os acordes de um breve interlúdio. Mestre Horácio levantou a mão para dar entrada ao Coro e, nesse preciso instante, a voz forte, timbrada e sonora do Papo-Seco elevou-se num solo surpreendentemente belo, sem uma única falha na harmonia dos acordes do Coro da Câmara, que ficou a ouvir-se como fundo maravilhoso, sustentando um solo improvisado mas verdadeiramente genial.
A saída da missa de domingo é, sempre, um acontecimento em Montes Ermos. Julgo que em toda a parte. Até mesmo nas grandes cidades, as pessoas aproveitam a saída da missa para se cumprimentarem, matarem saudades, saberem novidades, mostrarem vestidos, comentarem ditos e mexericos e, Deus me perdoe, até, dizerem mal dos outros.
Mestre Horácio era aguardado com redobrado interesse. E compreendia-se. Para mais, numa terra, onde toda a gente sabia de tudo e se arrogava a dar opiniões e pareceres, sobre música, mesmo sem nunca ter aprendido a distinguir uma nota de música de uma atafona.
Mal transpôs a porta da igreja, Mestre Horácio foi o centro do mundo. “Parabéns, Mestre, muitos parabéns”. “ O seu Tantum Ergo é maravilhoso”. ”Que coisa mais linda, parabéns”. “Obrigado, Mestre, a sua música é verdadeiramente extraordinária”. E tudo isto repetido, com as mesmas ou por outras palavras, até que se abriram alas e se fez um expectante silêncio. A senhora Morgada da Faiopa aproximava-se, com o habitual séquito. “Parabéns, Mestre, que encantadora a sua música. É linda, linda, linda, linda. Tudo muito afinadinho. Todos muito certinhos. Adorei, adorei, adorei, adorei. Parabéns, mais uma vez. Ah! Uma pergunta só. Quem cantou aquele solo, verdadeiramente, encantador? A melodia é extraordinária, mas a voz é soberba. Nunca ouvi nada tão belo, tão raro, tão singular. Quem cantou?”.
Estendendo o braço, lentamente, Mestre Horácio apontou e disse, apenas, “Aquele. A melodia e a voz eram dele”.
Do outro lado da rua, num mar inebriante de sol, o Papo-Seco tentava, com um sorriso meigo e gestos brandos, afagar um cão vadio, como ele, mas que lhe rosnara, ao passar.
Não sei que é feito dele. Mas, se não morreu, ainda, talvez continue palmilhando as estradas sem sombras do Alentejo.
Carlos Tomás Cebola