8.8.17

ENTREVISTA - Ricardo Mateus: homem simples, desportista de eleição, nisense com N grande

“As autarquias devem dar mais atenção ao atletismo e organizar mais provas, para que apareçam novos valores.”
- Ricardo Mateus
 Ricardo Mateus cumpriu o sonho de representar o seu clube de eleição, o Sporting. Na entrevista ao Jornal de Nisa, o atleta nisense diz sentir-se muito feliz por ir representar o clube do seu coração e recorda as primeiras passadas no atletismo. Com a simplicidade que o caracteriza, fala do ainda curto, mas não menos fulgurante percurso, que o levou ao título de campeão nacional de Corta-Mato (juniores) e a vestir a "camisola das quinas", representando Portugal nos Mundiais de Corta-Mato, no Quénia.
Começamos por uma “viagem” até à infância. Como foram os teus tempos de criança, em Nisa?
“Lembro-me de alguns locais de brincadeira até aos 5 anos. Morámos dois ou três anos no Canto Pinheiro, era muito pequeno e não recordo nada de especial. Na Fonte da Cruz é que estão as minhas referências, mas foi no jardim-escola, com 5 anos, que comecei a ter amigos para brincar.
A vontade de correr e de ganhar quando é que “despertou”?
Aparece na escola primária. Havia algumas provas a nível do desporto escolar, tínhamos educação física com o senhor João Vitorino e o Álvaro e sempre que havia uma prova eu também corria, mas até ao 3º ano tinha más classificações, julgo que devido às distâncias serem curtas, 500 metros. No 4º ano comecei a destacar-me porque os percursos eram maiores. Num ano que se disputou o Corta-Mato escolar em Alpalhão, arrependi-me de não ter ido para a frente, classifiquei-me mal e disse aos da organização, na brincadeira, que tinha sido o 3º e eles quase que acreditavam.
No 1º ano do Ciclo, fiquei em 2º lugar na prova de corta-mato, o 1º foi o João Paralta. Não quis ir ao distrital e depois arrependi-me, mais uma vez.
No 6º ano vi que era o melhor a correr, das três turmas. Venci a prova em Nisa, 2/3 Kms e fui ao Distrital, tendo ficado nos 15 primeiros classificados. No 7º ano meteram-nos a competir com os do oitavo, fiquei em 3º e quem ganhou foi o Cabim. A partir do 8º ano e até ao 12º ganhei sempre a nível da escola e nos 11º e 12 anos venci a nível distrital.
Havia alguma preparação especial para competir?
A preparação era a do futebol, pois joguei desde pequeno no Nisa e Benfica, em todas as categorias até júnior, no primeiro ano, e só não alinhei no segundo, por terem acabado com este escalão. A preparação era correr, sozinho ou com o meu pai, e um dia, há 3 anos, fui correr em corrida lenta/média e quando dei por mim já tinha percorrido trinta quilómetros.
A corrida dava-te algum prazer ou sensação diferente?
Gosto de correr e testar as minhas capacidades. Uma das coisas positivas que a corrida me trouxe foi a de ter posto o tabaco de lado. Eu fumava, não muito, mas o meu organismo nunca aceitou o tabaco e penso que a corrida fez o resto: tornou o “vício” incompatível com o meu bem-estar.
A nível desportivo tinhas dois “amores”, o futebol e o atletismo. Como é que decidistes?
Eu comecei a jogar nas “escolinhas” e nunca me destaquei muito nos primeiros anos e entretanto ia correndo também.
Posso dizer que até à idade de júnior gostava mais de futebol. O atletismo só aparecia de tempos a tempos, até por que não tinha mais ninguém com quem correr.
Em júnior, no 2º ano (acabou por não haver) já tinha decidido que me dedicaria ao atletismo.
Qual foi a tua primeira prova “a sério” e como é que decorreu?
Foi o ano passado. Aproveitei as férias para treinar na praia. Comecei a treinar no princípio de Julho e metade dos dias de treino na praia já foram um pouco condicionados, devido ao desnível do terreno. Preparei-me bem para esta prova, o 1º Grande Prémio da Feira de Artesanato de Nisa.
Ainda na primeira volta, já ia destacado, começou a doer-me o pé direito. Os outros atletas que vinham atrás foram-me ultrapassando e um pouco mais à frente acabei por desistir.
A minha presença foi notada pelo Director Técnico Regional, João Correia, que já devia ter alguma referência minha.
Depois, parei durante mais de um mês, e em conversa com o Gonçalo Louro ele aconselhou-me a prosseguir os treinos e a apostar no atletismo. Comecei a treinar com mais determinação, cerca de 10 quilómetros /dia, durante três semanas, à tarde, por vezes até de noite, isto antes de ir a Portalegre fazer testes. Nestas 3 semanas deixei de fumar, hoje não toco no tabaco e não me faz falta, apesar de nunca ter notado o malefício do tabaco na corrida.
Em Portalegre fiz o teste de Cooper que consiste em dar 8 voltas à pista num determinado tempo, foi muito puxado e dei o que tinha porque eu queria mostrar todo o meu valor.
Começou aqui, verdadeiramente, a tua “aventura” no mundo do atletismo?
Comecei a competir, regularmente, em representação do Nisa e Benfica, com os resultados que conhece e foi dando conta no jornal. Nunca pensei, logo no início de competição, entrar no grupo dos primeiros num campeonato nacional. Outros atletas da região, com muita experiência, casos do Vítor Cordeiro, Licínio Canhoto e Luís Costa, diziam-me que eu tinha condições para chegar aos três primeiros lugares. O professor João Correia incentivou-me a “correr com cabecinha”. No dia da prova tive muitos apoios, muitas palavras e gritos de estímulo das minhas amigas do atletismo.


Como é que te sentiste entre os “craques” do atletismo nacional?
Eu senti-me muito bem tanto no campeonato do Alentejo de Corta-Mato em que venci a prova de juniores, como no campeonato distrital absoluto, que ganhei, batendo os atletas seniores. Estava em grande forma e a expectativa, a partir daqui era a de conseguir ficar nos três primeiros lugares.
Corri sempre “colado” aos atletas que eram favoritos, eles tentaram, por diversas vezes, fazer-me descolar, mas mantive-me sempre no grupo da frente e na última volta (2 Km) vi que estava em condições de ficar nos primeiros lugares e que os meus adversários não podiam estar melhor do que eu, senão tinham “apertado” mais.
Quando tocou o sino a anunciar a última volta, “ataquei” e distanciei-me, apenas o Pedro Cyrne, um dos favoritos, me conseguiu acompanhar. Mantive-me lado a lado, sem forçar demasiado e quando faltava um quilómetro, num troço cheio de lama, dei um safanão, destaquei-me e vi que ele não conseguia acompanhar-me. Fiz um esforço final até à meta, mantive o ritmo forte e acabei por ganhar.
Ricardo, nesta conversa, já me falastes, diversas vezes em sofrimento. O que é isso do sofrimento, numa modalidade de que se gosta?

No atletismo, mais do que noutra modalidade desportiva, para além da capacidade ou da técnica que um atleta tenha, é preciso também uma grande capacidade de sofrimento.
O sofrimento, a nível muscular, não representa quase nada. É mais a nível físico e psíquico.
Numa prova cada atleta dá o máximo e quando chega à meta, os pulmões estão a “rebentar”. O sofrimento, para explicar melhor, é como se uma pessoa estivesse a morrer com falta de ar e acaba por morrer, enquanto o atleta pelo esforço feito, tem falta de ar, mas recupera. O sofrimento, está na capacidade para aguentar, de suportar ou adequar a ânsia de vencer ao desgaste da corrida. Quando a corrida termina são precisos alguns minutos, para que a respiração volte ao normal. O atleta tem que ter esse espírito de sacrifício.
Foi sofrida esta vitória. O que representou para ti seres campeão nacional de corta-mato?
No primeiro dia parece que não acreditava e só quando o prof. João Carlos me telefonou, à noite, a dizer que tinha sido seleccionado para representar Portugal, aí fiquei muito contente e pensei para mim: “agora já podes dizer que és campeão nacional!”. Fiquei muito emocionado, houve muita alegria e foram dias especiais. Sentia que tinha subido vários patamares no atletismo e no entanto continuava surpreso comigo mesmo.
A nível das pessoas, não houve assim grandes diferenças, o que até se compreende, uma vez que o atletismo não tem a projecção dada ao futebol.
Os campeonatos mundiais no Quénia
Como é que decorreram os dias que antecederam a partida para o Quénia?

Foram duas semanas em que não houve grande ansiedade, porque sabia que as condições que iria encontrar no Quénia seriam muito diferentes, de tal modo que não permitia ter expectativas muito elevadas, apenas dar o nosso melhor. Pelos tempos e as classificações dos anos anteriores tencionava ficar nos 60 primeiros, mais ou menos por aí e sem um objectivo primordial.
A preparação manteve-se com o alto treino competitivo que tinha feito antes, com excepção de algumas séries que não tinha experimentado.
E a viagem, que sensações experimentaste dentro de um avião?
Foi a primeira vez que andei de avião e fiz a viagem o mais descontraído possível. Nas descolagens e aterragens é que sentia alguns arrepios e uma dor no ouvido. Mas foi muito interessante e o trajecto deu para conhecer um pouco de Amesterdão, ver o Kilimandjaro, a montanha mais alta de África e Nairobi. Pouco depois de termos aterrado em Nairobi, senti logo que a corrida ia ser muito dura, pois tinha dificuldades em respirar, era um sufoco.
De Nairobi seguimos num voo doméstico para Mombaça e fomos para o hotel.
Senti, aqui, pela primeira vez que “isto é mesmo África”, um mundo completamente diferente.
A prova como é que decorreu?
A prova tinha 120 atletas e eu geralmente fico bastante nervoso no início, mas nesta não.
Foi, como pensava, uma corrida a sofrer do princípio ao fim, de tal modo que cheguei a pensar em desistir. A parir da primeira volta foi um grande sofrimento e o treinador prof. Pedro Rocha dizia-nos “ajudem-se um ao outro”.
O problema não estava na entreajuda, mas sim no grande calor e humidade que se fazia sentir. Por causa disso, desgastei-me muito cedo e houve atletas africanos que desistiram. Era muito difícil continuar, mas na última volta senti-me melhor, talvez por ver a meta ao longe. Comecei a acelerar, passei 23 atletas e ganhei 49 segundos ao 2º português.
Fiquei contente com a classificação, não ficou longe daquilo que esperava, atendendo às condições. Fui o 11º europeu e à frente de alguns atletas africanos.

Representei o meu país, ganhei alguma experiência, participei numa competição a nível mundial, foi bom para ver o nível competitivo que estas competições apresentam, mas a minha maior surpresa foi ter sido campeão nacional, um título que não estava nas previsões, em tão pouco tempo.
Estiveste no Quénia, viste os atletas africanos “cilindrarem” os europeus. A que se deve essa supremacia dos atletas de África no atletismo, principalmente, a nível da corrida?
Falei das condições que encontrei no Quénia e das dificuldades de adaptação dos atletas europeus. Na Zâmbia, no Uganda e na Etiópia, provavelmente, as condições climatéricas são semelhantes. Eu acho que a supremacia dos africanos tem a ver com o passado genético, as condições em que treinam com muita humidade em altas temperaturas, o que faz com que treinem com pouco oxigénio. Como estão preparados dessa forma, precisam de se esforçar muito menos para obterem tão bons ou melhores resultados que nós só conseguimos com um esforço muito maior.
Vamos deixar o continente africano e centrar-nos no nosso distrito. Houve, como sabes, mudança na direcção técnica da AADP e Gonçalo Louro é o novo director técnico regional. O que esperas da sua acção?
Acredito que possa fazer um bom trabalho, como aquele que vinha a ser feito. A nível do concelho de Nisa, espero que ele possa aproveitar o meu “exemplo” para dinamizar mais o atletismo. Se houver mais gente a praticar, o gosto é maior e uns podem despertar os outros.
As câmaras e juntas de freguesia deviam dar mais atenção ao atletismo, organizar mais provas, de preferência nos centros das localidades para atrair mais pessoas. A partir dessas provas podem aparecer novos valores. É preciso que o atletismo seja mais divulgado, que haja mais e melhores condições de apoio aos jovens atletas. Uns trabalham, outros estudam e ainda treinam, sem acompanhamento médico.
Deixámos para o fim, o motivo que levou a esta entrevista. Vais representar o Sporting e pergunto-te, como encaras a mudança para tão grande clube?
O meu nome foi sugerido ao técnico do Sporting, Bernardo Manuel, pelo Luís Costa, um atleta veterano e amigo que também já representou os “leões”.
A ida para o Sporting, julgo que é um prémio às minhas qualidades, ao trabalho e à dedicação ao atletismo.
Estou muito feliz e se há uma equipa que me desse muito gosto representar em Portugal, esta é, sem dúvida o Sporting, não apenas por eu ser sportinguista, mas pelo passado histórico deste clube no atletismo nacional.
Por enquanto, vou continuar em Nisa, em qualquer altura poderei ser chamado para Lisboa e a haver uma mudança a nível de ambiente, penso que serei capaz de a suportar e de me adaptar.
Num futuro próximo e a nível dos sub-23 vou continuar a trabalhar para ser aquilo que fui em júnior e representar o clube o melhor possível, mostrando o meu valor.
Após a ida ao Quénia estava a preparar-me para os campeonatos nacionais de pista (juniores) e sub-23, lesionei-me e tenho estado um pouco limitado, motivo por que não pude participar nestas provas. Tive pena porque podia fazer um excelente resultado nos 5.000 metros e nos sub-23 iria tentar obter os mínimos para poder participar nos campeonatos europeus de juniores (5.000m). Sou jovem e há-de haver outras oportunidades...

Quero agradecer a tua disponibilidade para esta conversa e para a “sessão” fotográfica, com a camisola do Sporting. As linhas que seguem ficam à tua disposição.
"Aproveito para agradecer a todas as pessoas que me têm apoiado. À minha família, em primeiro lugar, ao meu pai, pelo apoio, conselhos e ajuda nas lesões, tem sido um grande companheiro. Agradeço ao prof. João Carlos Correia, com um papel fundamental na minha evolução e adaptação. Aos massagistas João Rosa, Pedro Silva e João Silva, que por serem dos Belenenses não olham a “camisolas” quando se trata de ajudar. Foram todos impecáveis comigo. Peço desculpa se me esquecer de alguém e por isso a todos aqueles que me têm ajudado, o meu Muito Obrigado!
Mário Mendes in "Jornal de Nisa" nº 241 - 17/10/2007
NOTA: A reposição desta entrevista é uma homenagem ao Ricardo Mateus, ao homem humilde, ao desportista de eleição e ao cidadão nisense que, pesem embora as circunstâncias, merece toda a nossa gratidão, respeito e orgulho de com ele termos convivido.
Até sempre, CAMPEÃO!