“As autarquias
devem dar mais atenção ao atletismo e organizar mais provas, para que apareçam
novos valores.”
- Ricardo Mateus
Ricardo Mateus cumpriu o sonho de representar o
seu clube de eleição, o Sporting. Na entrevista ao Jornal de Nisa, o atleta
nisense diz sentir-se muito feliz por ir representar o clube do seu coração e
recorda as primeiras passadas no atletismo. Com a simplicidade que o
caracteriza, fala do ainda curto, mas não menos fulgurante percurso, que o
levou ao título de campeão nacional de Corta-Mato (juniores) e a vestir a
"camisola das quinas", representando Portugal nos Mundiais de
Corta-Mato, no Quénia.
Começamos por uma “viagem” até à infância. Como
foram os teus tempos de criança, em Nisa?
“Lembro-me de alguns locais de brincadeira até
aos 5 anos. Morámos dois ou três anos no Canto Pinheiro, era muito pequeno e
não recordo nada de especial. Na Fonte da Cruz é que estão as minhas
referências, mas foi no jardim-escola, com 5 anos, que comecei a ter amigos para
brincar.
A vontade
de correr e de ganhar quando é que “despertou”?
Aparece na escola primária. Havia algumas provas
a nível do desporto escolar, tínhamos educação física com o senhor João
Vitorino e o Álvaro e sempre que havia uma prova eu também corria, mas até ao
3º ano tinha más classificações, julgo que devido às distâncias serem curtas, 500 metros . No 4º ano
comecei a destacar-me porque os percursos eram maiores. Num ano que se disputou
o Corta-Mato escolar em Alpalhão, arrependi-me de não ter ido para a frente,
classifiquei-me mal e disse aos da organização, na brincadeira, que tinha sido
o 3º e eles quase que acreditavam.
No 1º ano do Ciclo, fiquei em 2º lugar na prova
de corta-mato, o 1º foi o João Paralta. Não quis ir ao distrital e depois arrependi-me,
mais uma vez.
No 6º ano vi que era o melhor a correr, das três
turmas. Venci a prova em Nisa, 2/3 Kms e fui ao Distrital, tendo ficado nos 15
primeiros classificados. No 7º ano meteram-nos a competir com os do oitavo,
fiquei em 3º e quem ganhou foi o Cabim. A partir do 8º ano e até ao 12º ganhei
sempre a nível da escola e nos 11º e 12 anos venci a nível distrital.
Havia
alguma preparação especial para competir?
A preparação era a do futebol, pois joguei desde
pequeno no Nisa e Benfica, em todas as categorias até júnior, no primeiro ano,
e só não alinhei no segundo, por terem acabado com este escalão. A preparação
era correr, sozinho ou com o meu pai, e um dia, há 3 anos, fui correr em
corrida lenta/média e quando dei por mim já tinha percorrido trinta
quilómetros.
A corrida
dava-te algum prazer ou sensação diferente?
Gosto de correr e testar as minhas capacidades.
Uma das coisas positivas que a corrida me trouxe foi a de ter posto o tabaco de
lado. Eu fumava, não muito, mas o meu organismo nunca aceitou o tabaco e penso
que a corrida fez o resto: tornou o “vício” incompatível com o meu bem-estar.
A nível
desportivo tinhas dois “amores”, o futebol e o atletismo. Como é que
decidistes?
Eu comecei a jogar nas “escolinhas” e nunca me
destaquei muito nos primeiros anos e entretanto ia correndo também.
Posso dizer que até à idade de júnior gostava
mais de futebol. O atletismo só aparecia de tempos a tempos, até por que não
tinha mais ninguém com quem correr.
Em júnior, no 2º ano (acabou por não haver) já
tinha decidido que me dedicaria ao atletismo.
Qual foi a
tua primeira prova “a sério” e como é que decorreu?
Foi o ano passado. Aproveitei as férias para
treinar na praia. Comecei a treinar no princípio de Julho e metade dos dias de
treino na praia já foram um pouco condicionados, devido ao desnível do terreno.
Preparei-me bem para esta prova, o 1º Grande Prémio da Feira de Artesanato de
Nisa.
Ainda na primeira volta, já ia destacado,
começou a doer-me o pé direito. Os outros atletas que vinham atrás foram-me
ultrapassando e um pouco mais à frente acabei por desistir.
A minha presença foi notada pelo Director
Técnico Regional, João Correia, que já devia ter alguma referência minha.
Depois, parei durante mais de um mês, e em
conversa com o Gonçalo Louro ele aconselhou-me a prosseguir os treinos e a
apostar no atletismo. Comecei a treinar com mais determinação, cerca de 10 quilómetros /dia,
durante três semanas, à tarde, por vezes até de noite, isto antes de ir a
Portalegre fazer testes. Nestas 3 semanas deixei de fumar, hoje não toco no
tabaco e não me faz falta, apesar de nunca ter notado o malefício do tabaco na
corrida.
Em Portalegre fiz o teste de Cooper que consiste
em dar 8 voltas à pista num determinado tempo, foi muito puxado e dei o que
tinha porque eu queria mostrar todo o meu valor.
Começou aqui, verdadeiramente, a tua “aventura”
no mundo do atletismo?
Comecei a competir, regularmente, em
representação do Nisa e Benfica, com os resultados que conhece e foi dando
conta no jornal. Nunca pensei, logo no início de competição, entrar no grupo
dos primeiros num campeonato nacional. Outros atletas da região, com muita
experiência, casos do Vítor Cordeiro, Licínio Canhoto e Luís Costa, diziam-me
que eu tinha condições para chegar aos três primeiros lugares. O professor João
Correia incentivou-me a “correr com cabecinha”. No dia da prova tive muitos
apoios, muitas palavras e gritos de estímulo das minhas amigas do atletismo.
Como é que te sentiste entre os “craques” do
atletismo nacional?
Eu senti-me
muito bem tanto no campeonato do Alentejo de Corta-Mato em que venci a prova de
juniores, como no campeonato distrital absoluto, que ganhei, batendo os atletas
seniores. Estava em grande forma e a expectativa, a partir daqui era a de
conseguir ficar nos três primeiros lugares.
Corri sempre “colado” aos atletas que eram
favoritos, eles tentaram, por diversas vezes, fazer-me descolar, mas mantive-me
sempre no grupo da frente e na última volta (2 Km ) vi que estava em
condições de ficar nos primeiros lugares e que os meus adversários não podiam
estar melhor do que eu, senão tinham “apertado” mais.
Quando tocou o sino a anunciar a última volta,
“ataquei” e distanciei-me, apenas o Pedro Cyrne, um dos favoritos, me conseguiu
acompanhar. Mantive-me lado a lado, sem forçar demasiado e quando faltava um
quilómetro, num troço cheio de lama, dei um safanão, destaquei-me e vi que ele
não conseguia acompanhar-me. Fiz um esforço final até à meta, mantive o ritmo
forte e acabei por ganhar.
Ricardo,
nesta conversa, já me falastes, diversas vezes em sofrimento. O que é
isso do sofrimento, numa modalidade de que se gosta?
No atletismo, mais do que noutra modalidade
desportiva, para além da capacidade ou da técnica que um atleta tenha, é
preciso também uma grande capacidade de sofrimento.
O sofrimento, a nível muscular, não representa
quase nada. É mais a nível físico e psíquico.
Numa prova cada atleta dá o máximo e quando
chega à meta, os pulmões estão a “rebentar”. O sofrimento, para explicar
melhor, é como se uma pessoa estivesse a morrer com falta de ar e acaba por
morrer, enquanto o atleta pelo esforço feito, tem falta de ar, mas recupera. O
sofrimento, está na capacidade para aguentar, de suportar ou adequar a ânsia de
vencer ao desgaste da corrida. Quando a corrida termina são precisos alguns
minutos, para que a respiração volte ao normal. O atleta tem que ter esse
espírito de sacrifício.
Foi sofrida esta vitória. O que representou para
ti seres campeão nacional de corta-mato?
No primeiro dia parece que não acreditava e só
quando o prof. João Carlos me telefonou, à noite, a dizer que tinha sido
seleccionado para representar Portugal, aí fiquei muito contente e pensei para
mim: “agora já podes dizer que és campeão nacional!”. Fiquei muito emocionado,
houve muita alegria e foram dias especiais. Sentia que tinha subido vários
patamares no atletismo e no entanto continuava surpreso comigo mesmo.
A nível das pessoas, não houve assim grandes
diferenças, o que até se compreende, uma vez que o atletismo não tem a
projecção dada ao futebol.
Os campeonatos mundiais no
Quénia
Como é que
decorreram os dias que antecederam a partida para o Quénia?
Foram duas semanas em que não houve grande
ansiedade, porque sabia que as condições que iria encontrar no Quénia seriam
muito diferentes, de tal modo que não permitia ter expectativas muito elevadas,
apenas dar o nosso melhor. Pelos tempos e as classificações dos anos anteriores
tencionava ficar nos 60 primeiros, mais ou menos por aí e sem um objectivo
primordial.
A preparação manteve-se com o alto treino competitivo
que tinha feito antes, com excepção de algumas séries que não tinha
experimentado.
E a viagem, que sensações experimentaste dentro
de um avião?
Foi a primeira vez que andei de avião e fiz a
viagem o mais descontraído possível. Nas descolagens e aterragens é que sentia
alguns arrepios e uma dor no ouvido. Mas foi muito interessante e o trajecto
deu para conhecer um pouco de Amesterdão, ver o Kilimandjaro, a montanha mais
alta de África e Nairobi. Pouco depois de termos aterrado em Nairobi, senti logo
que a corrida ia ser muito dura, pois tinha dificuldades em respirar, era um
sufoco.
De Nairobi seguimos num voo doméstico para
Mombaça e fomos para o hotel.
Senti, aqui, pela primeira vez que “isto é mesmo
África”, um mundo completamente diferente.
A prova como é que decorreu?
A prova tinha 120 atletas e eu geralmente fico
bastante nervoso no início, mas nesta não.
Foi, como pensava, uma corrida a sofrer do
princípio ao fim, de tal modo que cheguei a pensar em desistir. A parir da
primeira volta foi um grande sofrimento e o treinador prof. Pedro Rocha
dizia-nos “ajudem-se um ao outro”.
O problema não estava na entreajuda, mas sim no
grande calor e humidade que se fazia sentir. Por causa disso, desgastei-me
muito cedo e houve atletas africanos que desistiram. Era muito difícil
continuar, mas na última volta senti-me melhor, talvez por ver a meta ao longe.
Comecei a acelerar, passei 23 atletas e ganhei 49 segundos ao 2º português.
Fiquei contente com a classificação, não ficou
longe daquilo que esperava, atendendo às condições. Fui o 11º europeu e à
frente de alguns atletas africanos.
Representei o meu país, ganhei alguma
experiência, participei numa competição a nível mundial, foi bom para ver o
nível competitivo que estas competições apresentam, mas a minha maior surpresa
foi ter sido campeão nacional, um título que não estava nas previsões, em tão
pouco tempo.
Estiveste no Quénia, viste os atletas africanos
“cilindrarem” os europeus. A que se deve essa supremacia dos atletas de África
no atletismo, principalmente, a nível da corrida?
Falei das condições que encontrei no Quénia e
das dificuldades de adaptação dos atletas europeus. Na Zâmbia, no Uganda e na
Etiópia, provavelmente, as condições climatéricas são semelhantes. Eu acho que
a supremacia dos africanos tem a ver com o passado genético, as condições em
que treinam com muita humidade em altas temperaturas, o que faz com que treinem
com pouco oxigénio. Como estão preparados dessa forma, precisam de se esforçar
muito menos para obterem tão bons ou melhores resultados que nós só conseguimos
com um esforço muito maior.
Vamos deixar o continente africano e centrar-nos
no nosso distrito. Houve, como sabes, mudança na direcção técnica da AADP e
Gonçalo Louro é o novo director técnico regional. O que esperas da sua acção?
Acredito que possa fazer um bom trabalho, como
aquele que vinha a ser feito. A nível do concelho de Nisa, espero que ele possa
aproveitar o meu “exemplo” para dinamizar mais o atletismo. Se houver mais
gente a praticar, o gosto é maior e uns podem despertar os outros.
As câmaras e juntas de freguesia deviam dar mais
atenção ao atletismo, organizar mais provas, de preferência nos centros das
localidades para atrair mais pessoas. A partir dessas provas podem aparecer
novos valores. É preciso que o atletismo seja mais divulgado, que haja mais e
melhores condições de apoio aos jovens atletas. Uns trabalham, outros estudam e
ainda treinam, sem acompanhamento médico.
Deixámos para o fim, o motivo que levou a esta
entrevista. Vais representar o Sporting e pergunto-te, como encaras a mudança
para tão grande clube?
O meu nome foi sugerido ao técnico do Sporting,
Bernardo Manuel, pelo Luís Costa, um atleta veterano e amigo que também já
representou os “leões”.
A ida para o Sporting, julgo que é um prémio às minhas
qualidades, ao trabalho e à dedicação ao atletismo.
Estou muito feliz e se há uma equipa que me
desse muito gosto representar em Portugal, esta é, sem dúvida o Sporting, não
apenas por eu ser sportinguista, mas pelo passado histórico deste clube no atletismo
nacional.
Por enquanto, vou continuar em Nisa, em qualquer
altura poderei ser chamado para Lisboa e a haver uma mudança a nível de
ambiente, penso que serei capaz de a suportar e de me adaptar.
Num futuro próximo e a nível dos sub-23 vou
continuar a trabalhar para ser aquilo que fui em júnior e representar o clube o
melhor possível, mostrando o meu valor.
Após a ida ao Quénia estava a preparar-me para
os campeonatos nacionais de pista (juniores) e sub-23, lesionei-me e tenho
estado um pouco limitado, motivo por que não pude participar nestas provas.
Tive pena porque podia fazer um excelente resultado nos 5.000 metros e nos
sub-23 iria tentar obter os mínimos para poder participar nos campeonatos
europeus de juniores (5.000m). Sou jovem e há-de haver outras oportunidades...
Quero agradecer a tua disponibilidade para esta
conversa e para a “sessão” fotográfica, com a camisola do Sporting. As linhas
que seguem ficam à tua disposição.
"Aproveito para agradecer a todas as pessoas que
me têm apoiado. À minha família, em primeiro lugar, ao meu pai, pelo apoio,
conselhos e ajuda nas lesões, tem sido um grande companheiro. Agradeço ao prof.
João Carlos Correia, com um papel fundamental na minha evolução e adaptação.
Aos massagistas João Rosa, Pedro Silva e João Silva, que por serem dos
Belenenses não olham a “camisolas” quando se trata de ajudar. Foram todos
impecáveis comigo. Peço desculpa se me esquecer de alguém e por isso a todos
aqueles que me têm ajudado, o meu Muito Obrigado!
Mário Mendes in "Jornal de Nisa" nº 241 - 17/10/2007
NOTA: A reposição desta entrevista é uma homenagem ao Ricardo Mateus, ao homem humilde, ao desportista de eleição e ao cidadão nisense que, pesem embora as circunstâncias, merece toda a nossa gratidão, respeito e orgulho de com ele termos convivido.
Até sempre, CAMPEÃO!