12.2.24

OPINIÃO: De quem é um país

A coisa mais corajosa que vi na manifestação contra os imigrantes foi uma pessoa sozinha a dar a cara e o corpo pela inclusão. Um homem sem tochas, sem tatuagens de ódio, só um homem e os seus princípios – a bravura é isso.
O ÓDIO GANHA braços longos quando as pessoas ao redor se calam. Fica cada um para o seu canto, para que nem as vejam, nem as ouçam, nem agucem a curiosidade sobre o que pensam. Fazem-se de transparentes, acham que é melhor não dizer nada, porque senão ainda arranjam problemas para eles e para os seus. Deixa-me mas é estar calado que isto não é comigo, eles que se entendam. O ódio também nasce do silêncio dos outros, da tolerância calada, do deixa andar, do não olhar para o outro e tratá-lo com o tamanho e a dignidade que ele merece. Estamos tão preocupados connosco, que nem sequer nos damos conta dos que caem ao nosso lado. O ódio pela diferença é a vitória da ignorância; é a desistência da curiosidade, do fascínio, do espanto, da riqueza enorme que a diferença nos pode acrescentar. Em vez disso, há quem ceda à tentação de se encher de raiva e de coisas que fazem disparar o coração para o mal. As manifestações pela inclusão dão que falar porque representam uma maioria a acolher minorias, até serem só um grupo de pessoas felizes por estarem juntas, cada uma com os seus bens e os seus males. Pessoas que se unem para mostrar ao País e ao mundo que não somos todos iguais, que somos todos diferentes, e que essa é uma das grandes alegrias que se tem nesta vida. A diferença é mais parecida connosco do que julgamos – somos sempre diferentes para quem quer tudo igual. Deus me livre de ter à minha volta só pessoas com as mesmas tradições e hábitos que eu. A grande vitória neste sábado que passou não foi a manifestação neonazi ter tão poucas pessoas, foi a festa da inclusão que aconteceu no Martim Moniz ter tantas pessoas e tão felizes. Enquanto se salivava de raiva numa zona da cidade, na outra cantava-se e dançava-se com quem escolheu Portugal para arriscar uma nova vida. Comia-se e bebia-se enquanto se festejava esta riqueza enorme de se estar com pessoas do mundo inteiro. Portugal é dos portugueses e de todos os que o escolheram para começar outra vez. A multiculturalidade é a vitória da aceitação contra a pequenez da exclusão.
Somos uns sortudos, e ainda há quem não se dê conta disso; temos gentes do mundo todo no nosso país. A coisa mais corajosa que vi na manifestação contra os imigrantes foi uma pessoa sozinha a dar a cara e o corpo pela inclusão. Um homem de 70 anos que se deixou ficar firme, a dizer em alto e bom som o que pensava. A falar por todos aqueles que tiveram de evitar passar pelo Chiado a essa hora, para não correrem riscos. Um homem sem tochas, sem tatuagens de ódio, só um homem e os seus princípios – a bravura é isso.
Quando leio num cartaz “Portugal aos portugueses”, fico triste por mim, por quem o lê, e sobretudo por quem o escreveu. Que País inventado será este? Uma pessoa que grite ódio aos imigrantes é como se gritasse que não gosta de si própria, para que toda a gente saiba.
Tantos emigrantes que Portugal tem espalhados pelo mundo, que só desejam fazer parte, sem nunca esquecerem de onde vieram. Se França exigisse “França aos franceses”, o que seria dos mais de meio milhão de emigrantes portugueses que lá estão? Arrisca-se viver noutro país quando não encontramos o que procurávamos no país onde nascemos. Essa travessia para o desconhecido implica dor, coragem, saudades, e esperança que o destino seja mais feliz do que o local de partida. Tenho muito respeito por quem não sabe ao que vai, mas que mesmo assim não fica. Tenho um redobrado respeito por quem não foge de medo quando sente que há quem os queira longe, ou mesmo mortos. Ser imigrante é ter mais coragem do que quem acorda onde nasceu. Agarram-se aos costumes e às tradições para poderem ter um pouco de casa fora de casa. Com cara feita de marcas de um passado inquieto, pegam nas mãos dos filhos, e esperam conseguir atravessar o dia sem serem ofendidos e agredidos. Na intrincada tapeçaria que é isto de ser um país, a verdadeira essência esteve representada este sábado numa festa onde todos foram bem-vindos, viessem de onde viessem. No Martim Moniz a imigração desdobra-se como um espelho partido, as ruas testemunham passos cansados que sussurram histórias de terras distantes. Quem por lá passeia transcende mapas e códigos postais, e está no mundo inteiro, num só sítio. E quem por lá fica, olha para o sol e tenta imaginar o que estará o resto da família a fazer àquela hora, debaixo daquela mesma bola de fogo, no país que tiveram de deixar. E resistem, porque são feitos do que foram e do que esperam vir a ser. 
* Bruno Nogueira in www.sabado.pt - 8.2.2024
** Capa da revista "Notícias Magazine" - Suplemento do Jornal de Notícias de 11.2.2024