11.4.21

OPINIÃO: Crise habitacional em Almada: apagar fogo com gasolina

 

Amanhã começa o julgamento no Tribunal de Monsanto com a presidente Inês de Medeiros no papel de acusadora. No banco dos réus sentam-se famílias pobres que ocuparam duas dezenas de casas municipais em Almada, um dos municípios do país que mais combina carências habitacionais com ausência de respostas públicas.
“Será que as conhece?” Assim começa a Carta Aberta à Presidente da Câmara Municipal de Almada promovida pelo MuDHa - Movimento de Mulheres pelo Direito à Habitação.
“Elas” são Eulália, 72 anos, com uma reforma de 257 euros e que estava a dormir num carro; Emília, 52 anos, que trabalha nas limpezas mas o que ganha não é suficiente para pagar a renda de uma casa onde vive com as filhas e a mãe acamada; e Vanessa, 30 anos, mãe de três filhos com 10 anos, 4 anos e sete meses. A reportagem diz que “Eulália, Emília e Vanessa não tinham como pagar uma renda no mercado de arrendamento tradicional e ocuparam casas fechadas em prédios da Câmara de Almada. O Município avançou com queixa-crime por arrombamento e ocupação abusiva”.
Assim começa a história que vai amanhã a julgamento no Tribunal de Monsanto com a Presidente Inês de Medeiros no papel de acusadora. No banco dos réus sentam-se famílias pobres que ocuparam duas dezenas de casas municipais em Almada, um dos municípios do país que mais combina carências habitacionais com ausência de respostas públicas. Aqui chegados, e antes de continuar, não se pode ignorar que este caminho foi uma escolha. Os processos de despejo não correm em tribunais criminais, a violência psicológica e social de uma queixa crime teria como alternativa ações civis com que a Câmara pudesse tentar chegar a acordo e recuperar as casas sem recorrer à chantagem contra quem nada tem.
Às famílias restou recorrer a um advogado e a esperança num Direito que não seja feito por máquinas nem aplicado por algoritmo. A ordem jurídica preserva uma hierarquia de valores, procura garantir direitos individuais e coletivos e proteger da ilicitude ou da culpa quem age por essa necessidade. Nesse sentido é menos selvática do que uma Câmara Municipal que age com a lógica e a violência de um proprietário privado.
Mas o município não é um proprietário privado. E portanto não se trata apenas de perguntar em que circunstâncias é que o património cede ao drama humano. A censurabilidade do ato de ocupar uma casa municipal vazia para procurar abrigo deve ou não ceder perante a culpa de uma entidade pública que falhou a missão constitucional e o dever jurídico de proteger o direito à habitação daquelas pessoas?
Pior, ficará a Câmara desobrigada desse dever se as pessoas forem condenadas e, além da multa, forem para a rua em plena pandemia? O que fará então a autarquia? Negar-lhes humanidade por serem “criminosas” ou acolhê-las, como é sua obrigação, hipocritamente ignorando que foi a própria que as despejou? Que bem - individual ou comum - é que este julgamento pretende preservar ou poderá alcançar? Qual é a boa saída, a saída justa?
A armadilha foi autoinfligida e o isco foi o preconceito de quem governa e que corrompeu a hierarquia de valores que devia presidir à gestão da coisa pública. É escusada a tentativa de resolver problemas sociais pela força da polícia e dos tribunais, uma política já patenteada pela extrema direita na insinuação de que há pobres bons e pobres maus.
Não vale a pena desviar o debate para outros assuntos, mais ou menos legítimos, quando o problema é a insensibilidade social de quem avançou para esta queixa-crime e decidiu acrescentar sofrimento e exclusão a tantas vidas difíceis. É inútil tentar apagar fogo com gasolina.
Eu conheço-as, a Eulália, a Emília e a Vanessa. As histórias da sua pobreza não serão iguais às de todos os outros mas não há bem no mundo que comece por essa distinção. Mais fácil é distinguir entre bons presidentes de Câmara e maus presidentes de Câmara.

Joana Mortágua in jornal “I” -8/4/2021