É muito penoso escrever sobre a ignomínia. Sobre aquilo que nem nos nossos piores pesadelos pensamos ser necessário escrever um dia.
Mas está aí e está por toda a parte, nas conversas fugazes do dia a dia, à entrada de um qualquer café, na bolha das redes, nas "timelines" avulsas e nas horrendas caixas de comentários anónimos.
Por vezes, nos conhecidos mais distantes que nos tiram a rede e nos encostam ao muro. É difícil imaginar que podemos ter chegado ao ponto em que há gente capaz de querer repetir o pior da História, apagar o hediondo para reescrever fascismos a bold, rasurar pecados para simular virtudes. A ideia de decência desvanece-se. Aparenta ser só o início. E desvalorizar não parece ser o caminho.
Correu tempo entre o trio de skins-grunhos da escola secundária, suspensórios hirtos, reunidos a ouvir K7´s chrome ou ferro com música "Oi!" aos berros. Clássicos. Entre o assassinato de Alcindo Monteiro há décadas e a morte de Bruno Candé há dias, vários são os episódios de manifesta violência e de intimidação, homofobia, xenofobia e racismo. As crises, no entretanto, foram e vieram. Não são só as crises económicas que potenciam o crescimento dos piores rancores em sociedade, não é só o mal social que contamina e propaga o holocausto com hormonas de crescimento. São precisos facínoras para lhe darem, ainda que oportunisticamente, corpo e voz. Eles chegaram, com alguns anos de atraso e sem a vergonha que tanto propalam não ver nos outros.
A extrema-direita em Portugal, depois de grupos e grupinhos de neonazis a galhofar às suásticas, ganhou assento parlamentar implícito com o Chega (CH). Depois da parada de dezenas de energúmenos mascarados com tochas à frente da sede do SOS Racismo, eis que avança para o envio de mails a uma dezena de pessoas, deputados e activistas, intimadas a abandonar os seus cargos e a deixar o país em 48h com ameaças de morte pendentes sobre si e seus familiares. Segundo a Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público já abriu inquérito. Mas a forma como a extrema-direita tem vindo a organizar-se, passa tanto pela forma como o Estado de Direito (não) lida com o seu crescimento, como pelo branqueamento de muita gente com responsabilidades políticas e públicas que não se importa de cobrir com lama.
Enquanto o PSD de Rui Rio brinca aos extremismos com Ventura, o líder da JSD, Alexandre Poço, admite que há um problema de discriminação racial em Portugal mas, à semelhança de Rio, não descarta alianças com o CH. Goucha reencarna em facho, relativiza e dá guarida a espécies primárias, Carlos Abreu Amorim desvaloriza supostas ameaças e o líder do PSD-Madeira, Miguel Albuquerque, estilhaça a memória de Sá Carneiro. Longe vai o tempo em que a preocupação da direita laranja era um Diabo virtual. Importa dizer que não passarão. Nem à boleia destes paninhos quentes. Ninguém se pode demitir desta luta. É tempo da nova maioria silenciosa dizer presente aos velhos sinais dos tempos.
Miguel Guedes in Jornal de Notícias - 14/8/2020* Cartoon de Vasco Gargalo - Aprés Manta