O tema não é de fácil abordagem. E, em tempos de crise sanitária, os riscos de radicalização de posições pouco ajudam. Mas a proibição da presença de público nos espectáculos desportivos permanece e é legítimo que os diferentes agentes desportivos estejam preocupados com a situação. E não são apenas razões de natureza financeira que o aconselham. É a própria natureza do espectáculo desportivo que o determina: uma competição desportiva com público é uma coisa. Sem público, outra completamente diferente.
É certo que o mundo do desporto ensaia novos formatos de organização do espectáculo desportivo, dispensando os espectadores em favor dos telespectadores e adoptando modelos da competição desportiva adaptados aos tempos de pandemia. Não creio que estes modelos tenham grande futuro.
O desporto é o que é, porque se transformou num espectáculo para ser fruído a partir do local da competição. A presença do público inscreve-se na esfera afectiva e emocional do espectáculo. O desporto é um espectáculo, antes de tudo, porque transforma o espaço desportivo num “teatro dos sonhos”, numa emoção partilhada entre atletas e público. A ausência de público transforma o lugar da competição num espaço frio, vazio, sem expressão e sem alma, desumanizado e dessacralizado da presença e envolvimento das pessoas. Mesmo o espectáculo desportivo televisionado fica mais pobre se dispensa o registo das emoções dos próprios espectadores, ainda que, também para isso, a tecnologia procure encontrar sucedâneos.
Na situação actual não se nos afigura muito sensato defender que, estabelecidas regras de segurança adequadas, existam condições do regresso do público a todos os espectáculos desportivos. Mas, de igual modo, não nos parece muito razoável ignorar que há espectáculos desportivos em que esse regresso é possível de ser garantido. Por uma óbvia e elementar razão: os espectáculos desportivos têm níveis distintos de atracção, acolhimento e envolvimento dos públicos e a própria natureza desses espectáculos é, também ela, diferente.
Neste, como em muitos outros problemas do sistema desportivo, existe uma crónica tendência de olhar para as diferentes modalidades desportivas pelos problemas de
apenas uma delas, em que o risco sanitário é maior e em que, porventura, a pressão para o regresso dos públicos é também maior, o que acaba por penalizar todo o sistema desportivo.
Há espectáculos desportivos em espaços abertos e outros em espaços fechados. Uns atraem algumas dezenas ou centenas de espectadores, outros milhares. Uns têm lugares sentados, outros a mobilidade é permanente. Nuns o barulho é constante, enquanto noutras o silêncio é um imperativo. As próprias dinâmicas e cultura das modalidades no comportamento dos espectadores são distintas.
Nesse sentido, a abordagem deste problema, e sobretudo a adopção de medidas progressivas de regresso do público às competições desportivas, tem de ser feita num quadro de avaliação casuística, um pouco à semelhança do regime que foi adoptado para o regresso aos treinos e competições das diferentes modalidades desportivas.
Tratar por igual o que é diferente será um erro. Existem competições desportivas nas quais é pouco compreensível a manutenção de um regime de proibição de espectadores, sendo certo que, em outro tipo de espectáculos, com riscos equivalentes ou maiores, o regime de proibição já foi levantado.
As autoridades governamentais e de saúde pública, juntamente com os responsáveis das diferentes modalidades desportivas, devem trabalhar, rapidamente e em conjunto, de modo a criarem os mecanismos que a situação aconselha, para que o regresso do público aos espectáculos desportivos possa ser progressivamente permitido e em segurança, tendo por referência as orientações técnicas que abundantemente têm vindo a ser produzidas por autoridades de saúde e organizações desportivas internacionais.
Se isso for feito, não vai ser possível anunciar amanhã o regresso dos espectadores a todos os espectáculos desportivos, mas será possível anunciar que passa a ser possível a um elevado número de competições desportivas o regresso dos espectadores.
José Manuel Constantino - Público - 16/8/2020 * Presidente do Comité Olímpico de Portugal