Somos humanos na exata medida em que nos relacionamos, estabelecemos relações sociais. Nunca tivemos dúvidas desta circunstância que nos diferencia dos restantes seres. Mas as coisas estão a mudar. O vírus, que nos apanhou de surpresa, mais do que a ameaça do risco de morte, parece roubar-nos a humanidade, uma longa história de partilha de afetos. Empurra-nos para a solidão, para um egoísmo securitário. Quantas vezes dou comigo, hesitante, sem saber o que fazer, sem ter a certeza se deva procurar aquela pessoa querida ou se ao fazê-lo estarei a causar um problema - a ternura a tornar-se ameaça.
Ficamos assim, por opção consciente ou apenas por constrangimento, longe de quem gostamos. Além do fim do abraço, um gesto tão antigo que a higiene sanitária proíbe, escondemos o rosto, recolhemos a casa, comodamente, para afugentar a peste. No fundo, julgamos que o outro prefere estar longe de nós. O medo, o medo vai ter tudo?
Em mais de 30 anos, este verão, o convívio que a minha família faz todos os verões numa serra do Minho ficou ensombrado. O receio de contágio, contagiar o outro ou ser contagiado, está a provocar o que nenhuma circunstância, mesmo as mais trágicas, alguma vez ousou alcançar.
Desistir de estarmos juntos, de inventar jogos para os mais pequenos, de fazermos a desforra do jogo de damas que perdemos no ano anterior. De nos rirmos, de ouvir o discurso jocoso a fechar a festa e nomear os "mordomos" para a do ano seguinte. Senti que pertencia à família quando fui pela primeira vez a esta festa ao ar livre, quando levei comigo os meus pais, e com os meus filhos ao longo do ano preparamos a reunião fraterna. Se este ano não formos à serra da Cabreira com um belo farnel, é aos mais novos desta enorme família que estamos a roubar alguma coisa. Não deixemos que o vírus nos vença. O medo não pode ter tudo.
Paula Ferreira - Jornal de Notícias - 10/8/2020