Tinha 77 anos e era a directora artística da companhia Escola de Mulheres. “Um teatro sem conflito, que não coloque questões e que não ponha as ideias em discussão não me interessa”, dizia ela.
Uma das figuras mais inconformadas do panorama teatral português. A encenadora e actriz Fernanda Lapa morreu esta quinta-feira, aos 77 anos, em Cascais, onde estava hospitalizada. A notícia foi dada através da companhia Escola de Mulheres. “É com profundo pesar e imensa tristeza que a Escola de Mulheres comunica a morte de Fernanda Lapa, directora artística desta companhia desde a sua fundação, em 1995”, destaca o comunicado.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, enalteceu a “voz interventiva nas questões do teatro, da cultura e da intervenção cívica”, e a ministra da Cultura, Graça Fonseca, classificou-a como uma “figura ímpar do teatro português dos últimos 50 anos”, salientando que, através do seu trabalho, deu “oportunidade, palco e voz às mulheres na representação.” O primeiro-ministro, António Costa, recordou alguém “que respirou liberdade, teatro e cultura a vida inteira”. ”Nunca calou a voz para defender o papel das mulheres contra preconceitos e estereótipos. Vamos sentir a sua falta”, escreveu, recordando que em Janeiro, no Teatro São Luiz, em Lisboa, agradeceu a Fernanda Lapa a homenagem que prestou ao seu pai, o escritor Orlando da Costa, ao encenar a peça Sem Flores nem Coroas, nunca antes representada.
Foi sempre uma lutadora, uma voz inquieta, por vezes até incómoda, no contexto do meio teatral português. Actriz, encenadora, pedagoga, fundadora da Casa da Comédia em 1963, e da Escola de Mulheres em 1995, mãe de três raparigas, combatente, resistente, de esquerda, Fernanda Lapa era uma combinação entusiasmante, na forma de pensar e de estar no mundo, entre teatro e política. “Um teatro sem conflito, que não coloque questões e que não ponha as ideias em discussão não me interessa”, dizia ao PÚBLICO, em entrevista a Tiago Bartolomeu Costa, em 2013.
Nessa mesma entrevista salientava que o enquadramento político e económico era essencial para pensar a condição de mulher. E contava uma história: “Não o percebi logo desde o início. Comecei a despertar para essa injustiça quando ainda era casada e quis comprar um carro e não me deixavam sem a autorização do meu marido, mas ele podia fazê-lo sem a minha. Um dia, ele disse para irmos jogar ao casino. Era moda na altura. Quando tivemos de preencher uma ficha, o senhor [que as distribuía] disse-me: “O seu marido tem de autorizar.” E, quando eu perguntei porque não tinha eu que o autorizar a ele, o senhor riu-se. Foram coisas destas que me fizeram despertar.”
Pela mão das mulheres
O director do Teatro Nacional D. Maria II, Tiago Rodrigues, vê nela “uma referência enorme do teatro português, que enriqueceu a vida de quem faz e vê teatro e que seguramente continuará a marcar a nossa memória”. O encenador, dramaturgo e actor nunca teve “o privilégio de trabalhar directamente com ela”, mas cita duas particularidades que o tocaram especialmente no seu percurso, que associa à “personalidade combativa”. A primeira é “o trabalho enorme que fez em prol da dramaturgia escrita pela mão de mulheres e pelo lugar da mulher, não apenas no teatro”, mas na sociedade portuguesa em geral. “Devemos-lhe essa capacidade de transformar a sociedade através da arte”, afirma. Outra particularidade, que diz não poder também passar despercebida, é a forma como sempre se “mostrou aberta aos artistas mais novos, não apenas inspirando-os e marcando-os com o seu próprio trabalho, mas também apoiando-os e muitas vezes até colaborando com eles”.
Tiago Rodrigues recorda, como “um dos grandes momentos do teatro português” a que pôde assistir, o seu trabalho como actriz, em 2007, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, na criação da Mala Voadora Desempacotando a Minha Biblioteca, encenada por Jorge Andrade. “Ela tinha aí uma prestação absolutamente incrível”, faz notar, realçando a “generosidade com que deu as mãos a uma companhia jovem, menos experiente, oferecendo-lhe a sua sabedoria e conhecimento”. Tiago Rodrigues afirma que “o teatro português ficou muito mais rico” com a passagem de Fernanda Lapa pelas vidas dos seus intervenientes e reclama a todos “a obrigação de continuar as suas lutas”.
Já o actor e argumentista Paulo Filipe Monteiro lamenta a perda de “uma gigante, seja como criadora, como intelectual, mas também como referência cívica”. Para o também professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, ela era, “além de artista, um ser humano exemplar: leal, vertical como ninguém”. E deixa uma nota: “É imensa a responsabilidade que fica de seguirmos o seu exemplo.”
Estreia como actriz e encenadora
Fernanda Lapa começou a encenar muito nova, num meio dominado por homens, tendo um vasto currículo nos palcos, na televisão e no cinema. Iniciou a carreira em 1962 no Teatro dos Alunos Universitários de Lisboa. Sendo uma das fundadoras da Casa da Comédia, em Lisboa, foi neste espaço que se estreou como actriz na peça de Almada Negreiros Deseja-se Mulher, em 1963. A mesma peça com que se estreará, em 1972, como encenadora, também no mesmo espaço teatral. Desde então dirigiu peças de teatro, teatro-dança e óperas, desenvolvendo paralelamente acções pedagógicas nas áreas do teatro e do cinema.
Em 1979 foi bolseira da Secretaria de Estado da Cultura, na Polónia, onde trabalhou com Szajna e Zigmunt Hubner na Escola Superior de Encenação de Varsóvia. Estagiou no Teatro Laboratório de Grotowski, no Teatro Contemporâneo de Wroclaw e no Teatro Stary de Cracóvia. Em 1995 foi co-fundadora da Escola de Mulheres (ao lado de Isabel Medina, Cucha Carvalheiro, Cristina Carvalhal, Conceição Cabrita, Marta Lapa e Aida Soutullo), de que foi directora artística até hoje, projecto criado por mulheres de gerações e experiências diversas, mas com a consciência comum do papel de subalternidade da mulher no teatro. O objectivo foi sempre o de privilegiar a criação e o trabalho feminino no teatro e promover e divulgar uma nova dramaturgia de temática e escrita femininas, tanto nacional como internacional.
Ao longo dos anos foi afirmando que era na encenação que se sentia realizada, manifestando activamente o seu interesse pelas questões das mulheres na cultura e não só. Defendia que “o teatro reflecte todas as contradições, avanços e recuos do papel da mulher na sociedade contemporânea”. A Escola de Mulheres nasceu com o intuito de romper com o panorama teatral português em relação à forma como as mulheres eram encaradas — quase nenhum texto de autoria feminina era representado, havia poucas encenadoras e a maioria das peças davam da mulher imagens estereotipadas ou idealizadas, sendo os elencos maioritariamente masculinos.
“Uma espécie de mãe”
A actriz e encenadora Cristina Carvalhal, co-fundadora da Escola de Mulheres, chama-lhe “uma espécie de mãe”. Segundo ela, Fernanda Lapa teve um papel determinante na sua vida. Primeiro, quando, após terminar o 12.º ano e numa altura em que “esperava para entrar em Medicina”, se matriculou na Escola de Circo Mariano Franco (precursora do Chapitô), onde Lapa assegurava um curso de Teatro. “Tudo mudou com essa experiência”, diz. Concorreu depois ao Conservatório, acabando por reencontrar Fernanda Lapa já enquanto actriz, em 1991, no Teatro Aberto, na peça A Rapariga de Varsóvia. Dois anos mais tarde voltaria a ser dirigida por Lapa, na mesma sala, em Top Girls, peça de Caryl Churchill — que, curiosamente, Carvalhal encenará na próxima temporada do Teatro Nacional D. Maria II. “Esse foi outro momento marcante”, recorda, “porque foi quando resolvi começar um percurso como freelancer.” Pouco depois, na sequência de novo encontro numas filmagens, juntar-se-iam na fundação da companhia Escola de Mulheres. (...)
Vítor Belenciano - Público - 6/8/2020
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