2.8.20

OPINIÃO: É o polvo quem mais ordena

Não nos compete decidir se usaram o poder político ou económico de forma ilegal, isso compete aos tribunais. Mas é inegável que uma mão-cheia de pessoas detinha um poder enorme e que muito possivelmente o usou de alguma forma concertada.

Este ano, quando mais precisamos dela, não há silly season.
Nota prévia 1: a presunção de inocência é um dado nesta coluna. Nota prévia 2: o que é descrito aqui acontece em muitos países, mas não quer dizer que não possamos falar sobre isso no nosso.
Este ano, quando mais precisamos dela, não há silly season. Antes pelo contrário, estamos em pleno verão quente a assistir a uma temporada de thrillers que tiram o sono a juízes, procuradores, advogados, governantes, gestores (e, já agora, a jornalistas).
TAP, Efacec, EDP, BES. A cada semana somos presenteados com episódios importantes de uma ou mais destas séries. Injeções, nacionalizações, suspensões, acusações. Assuntos sérios que não nos deixam tempo para nos entretermos com faits divers lúdicos e absurdos que poderiam ajudar a esquecer por momentos o pesadelo que tem sido este ano marcado pela pandemia.
Esta espécie de binge watching trouxe, no entanto, algumas vantagens, tornando ainda mais claras certas noções sobre a natureza do poder político e económico.
A primeira é que as relações entre estes poderes são altamente complexas em Portugal. É provavelmente o caso na grande maioria dos países desenvolvidos, mas a leitura dos documentos divulgados nos episódios mais recentes aponta para um nível de complexidade criado nas últimas duas décadas que não é natural. Ou seja, foi desenhada de forma propositada para ser controlada, com agendas de ganhos, sejam eles políticos ou financeiros.
Os nomes que aparecem no elenco estão de muitas formas ligados e já não é só na nossa imaginação, é em documentos, escutas, testemunhos. Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi, José Sócrates e Manuel Pinho, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, António Mexia e João Manso Neto, Isabel dos Santos e o pai.
Não nos compete decidir se usaram o poder político ou económico de forma ilegal, isso compete aos tribunais. Mas é inegável que uma mão-cheia de pessoas detinha um poder enorme e que muito possivelmente o usou de alguma forma concertada. Por mais pejorativa que seja, é impossível, portanto, fugir à ideia de um ‘polvo’ que controla com os vários tentáculos um universo alargado e profundo. Quem era a cabeça do animal dos oito pés será, provavelmente, tema para outra coluna.
A segunda noção que fica ainda mais clara é que dificilmente a ação desse ‘polvo’ terá tido como principal resultado (ou prioridade até) o benefício público, acima do privado ou do político. Nem todos tinham a obrigação de servir o público, por exemplo Salgado, mas tinham o dever de pelo menos evitar o prejuízo público.
A clareza adicional sobre estas duas noções leva, contudo, a uma terceira ideia que é mais opaca – a razão do desmantelar da rede. A queda do polvo não é nova, provavelmente iniciou-se com Sócrates e depois Salgado. Na base, pode ter estado a crise económica e financeira, que expôs as fragilidades do sistema.
Os episódios recentes parecem, no entanto, mostrar que há uma vontade de concluir de vez esse processo de desmantelamento, através da justiça ou do poder político.
A quarta noção nem é clara, nem opaca, é mais uma pergunta. Será que um polvo irá ser simplesmente substituído por outro? A pergunta pode parecer especulativa, mas é baseada na noção que o poder, em todas as suas formas, nunca cai no vazio. Há sempre um grupo pronto a tomar o lugar de outro que caiu ou foi derrubado.
Motivação não deve faltar. Estamos perante uma crise inédita, mas que vai ter uma resposta na forma de 58 mil milhões de euros vindos da Europa. Ou será tudo pura coincidência?
Shrikesh Laxmidas - 24/7/2020 - in www.jornaleconomico.sapo.pt