Brincou com bonecas de trapos, tendo a rua como cenário.
Atravessou mares e tempestades no oceano da vida. Em tempo de bonança cantou,
ensaiou ranchos, escreveu, fez teatro. Pelo meio e como tantas mulheres de Nisa,
iniciou-se na arte dos bordados, trabalho meticuloso de muitas canseiras e
poucos proventos.
Acaba de ver o seu mérito reconhecido e contemplada com o 1º
Prémio de Artesanato Criativo, na fase regional do Prémio Nacional de
Artesanato 92.
Tem mil e um projectos, desses que povoam a nossa
existência: continua a sonhar com o teatro e o “bichinho” do folclore – salta à
primeira vista – persiste teimosamente dentro de si. E chega de apresentações. O melhor, é lerem a história de
Maria Dinis Pereira: Uma mulher de “armas”.
Recordações de
infância
“Brinquei com as outras miúdas, na rua, com bonecas de
trapos. Fui para a escola, os meus pais eram pobres, nem 5 tostões havia para a
Caixa Escolar.
Desde pequena que tive tendência para os bordados. Na
escola, como não havia dinheiro para comprarmos lenços, a minha mãe rasgava os
lençóis velhos e dava-me um bocado e outro ao meu irmão. Eu nesse dia mal me
assoava, na escola, mas no dia seguinte já levava bainhas no pano, como se
fosse um lenço.
Fiz a 4ª classe e fiquei com mágoa de não poder continuar a
estudar, mas em casa não podia haver mais sacrifícios. Fui servir e comecei a
bordar à mão. Nunca ninguém me ensinou, puxei pela cabeça e tentei fazer tudo e
mais alguma coisa.”
Juventude inquieta: a música e o teatro
“Sempre gostei de cantar. Ia para os bailes que fazíamos na
rua e com outras raparigas, bailava e cantava. Não eram precisos grandes
instrumentos, bastava que houvesse uma “cigarrinha” (gaita de beiços) e estava
o baile arrumado. Tinha a ideia de formar um rancho, mas não sabia como
começar.
Nessa altura surgiu em Nisa um senhor, Rodrigues Correia,
que fazia teatro amador. Éramos vizinhos e eu assistia muitas vezes aos
ensaios. Dei por mim a pensar que não era difícil fazer teatro e vai daí
arranjei um grupo de rapazes e raparigas e fiz as marchas de S. João em 1971.
Vieram ranchos de Montalvão, da Boavista (Portalegre), toda a gente gostou.
A partir das marchas, formámos um grupo de teatro. Escrevi
uma peça, “O Direito de Escolher” que levámos a cena e foi um êxito. Depois uma
outra que a Comissão de Censura cortou porque falava na guerra colonial,
intitulada “Um filho do povo”. Uma semana antes de a levarmos a representar, fomos informados que a peça tinha sido cortada e num contra-relógio ensaiámos “O Céu da minha
Rua”, de Aquilino Ribeiro.
Saiu tudo bem, outro êxito e parámos por aí. Os actores
começaram a dispersar-se, cada um seguiu a sua vida e o grupo desmembrou-se.
Foi uma grande desilusão para mim. Ainda fiz algumas
tentativas para reanimar o grupo, mas os elementos mais importantes tinham
saído de Nisa e foi uma pena, pois, a nível de amadores, havia actores de
grande qualidade.
Nessa altura o senhor Rodrigues Correia abandonou também
Nisa e o Rancho Típico das Cantarinhas, que formara, acabou também.
Mais tarde, as moças que tinha a trabalhar comigo,
desafiaram-me para eu reorganizar o Rancho. Pusemos de pé o Rancho das
Cantarinhas onde estive alguns anos, até que, desiludida com as pessoas e com a
perspectiva que imprimiam ao Rancho, saí.
Vim trabalhar para as instalações onde estou (a antiga
cadeia) e entretanto surge a ideia da formação de outro Rancho. Pediram-me para
o ensaiar e só após aceitarem a minha exigência que o Rancho fosse integrado
numa associação que lhe garantisse a sobrevivência, aceitei.
Nasceu assim o Rancho Folclórico da Casa do Povo de Nisa,
“nascimento” com alguma polémica, por já existir outro. Percorremos o país,
estive em alguns congressos sobre folclore, aprendemos muito e vi que o
folclore não é apenas vestir xaile bordado e uma saia e bailar. Havia que ter
um trabalho mais minucioso, de pesquisa e estudo das tradições.
A minha vida, entretanto, mudara e desliguei-me do rancho,
pois não tinha tempo disponível.”
A mulher e a Artista
Teatro e folclore, entradas e saídas, desilusões acumuladas
e sempre, de novo, os recomeços. Um espírito insatisfeito, numa mulher
indomável, polémica sem dúvida e que aos 48 anos continua a aceitar novos
desafios e a derrubar mitos e preconceitos.
“ Voltaram a convidar-me para dirigir o Rancho das
Cantarinhas. Aceitei, impondo como condição a transformação radical do rancho.
O desafio foi aceite e depois de um processo demorado, conseguimos a mudança
que se impunha. O Rancho filou-se na Federação do Folclore Português e ganhou
uma nova dinâmica.
Começou a haver um trabalho de recolha mais sério e
selectivo e as actuações adquiriram um carácter mais genuíno, divulgando as
tradições do concelho. Penso mesmo que, apesar de haver dois ranchos em Nisa,
ambos tinham muito para dar, tal a riqueza da etnografia da nossa região.”
O Pé da Serra, por
exemplo, é uma fonte inesgotável...
“Sim, mas não só. Voltei a sair do rancho, embora continue
disponível para colaborar. Foram muitos anos ligados ao folclore e eu, porque
me sinto nisorra, sinto os êxitos e os fracassos dos dois ranchos, aos quais
dei muito de mim.
Não, não me julgo polémica ou autoritária. Tenho as minhas
ideias, a minha maneira própria de pensar e ser e as pessoas nem sempre
entendem o que eu quero. E daí...
Artesanato como ganha-pão
“O artesanato é o meu trabalho e sustento e, vamos lá, o meu
refúgio. Gostava de ver as coisas diferentes. Sentir que os jovens não deixavam
morrer as tradições existentes, que dessem força e apoio aquilo que é nosso,
aos grupos que temos. Aos poucos vamos deixando tudo morrer. Fizemos um
Carnaval há dois anos que foi um sucesso, praticamente sem apoios e organizar
um desfile daqueles custa muito dinheiro. Assim não vamos lá...”
A vocação para os
bordados
“Os bordados e a minha vocação para o artesanato, surgiu
quase naturalmente. A necessidade aguça o engenho e em Nisa não havia empregos
ou meios de subsistência a não ser o campo. Muitos saíram para França e Lisboa.
Os que ficaram tinham de agarrar-se a qualquer coisa. Eu agarrei-me aos
bordados.
Em dada altura começou a falar-se nos cobertores de faixa,
que ia abrir na Casa do Povo, eu pensei que também era capaz e experimentei. Um
dia encomendaram-me uma saia e coitada de mim, fiz para ali pontas e pontinhas
que nunca mais acabavam. Uma vizinha, a senhora Maria Ramos, explicou-me como
se “matavam” as pontas e pronto, não foi preciso mais nada.
Eu nasci com os bordados, com esta vocação. Sempre tive
complexo em pedir qualquer coisa e me ser negado. Então puxava por mim,
recorria à imaginação e comecei eu própria a fazer desenhos. Meus, tenho cerca
de quinhentos. Iniciei-me a fazer cobertores, que era o que se usava. Tive
moças a aprender na minha casa, cheguei a ter dez molas comigo, ordenados
fracos, que o artesanato é bom para o intermediário, não para quem o faz...”
O futuro incerto do
artesanato
“Fui convidada pela Região de Turismo para ir a uma Feira de
Artesanato e a partir daí percorri o país de lés a lés, apenas vindo a casa
buscar material que as moças então faziam. Assim fui divulgando o meu trabalho,
aperfeiçoando e conhecendo clientes que me ajudam a viver, porque o artesão se
não tiver quem lhes compre o trabalho, não pode sobreviver. Eu trabalho muito e
nunca paro, sempre a fazer coisas novas, a inventar novos desenhos, em vários
tipos de artesanato. Sei fazer bordados à mão, todos os pontos antigos,
alinhavados, embora não me dedique a isso. Veja lá que até pedrar cantarinhas
eu aprendi...
Faço mais arte aplicada (trabalhos de faixa como
primeiramente se chamavam) e não me queixo de falta de trabalho, nesse aspecto
sou feliz. Tenho encomendas do Porto, Lisboa e de Espanha, clientes que
mantenho desde há anos e sempre vão aparecendo novos clientes.”
O artesanato parece
ir de “vento em popa”...
“O artesanato, não quero ser pessimista, é a realidade, está
em vias de ter fim. Nasceu mal. Não houve “preparação para o parto”, não se
criaram as estruturas e a curo prazo pode morrer. Falta uma escola de
artesanato que desse continuação, que preparasse os jovens para esta
actividade. O dinheiro gasto em acções de formação, de que nada se viu e
aproveitou, tinha dado e sobrado para se avançar com uma escola nas condições,
pela qual desde há muito me venho debatendo.
O Prémio de Artesanato foi um estímulo importante, mas
quando concorri foi a pensar em ganhar. Nunca ganhei nada. Sempre trabalhei e
meti em iniciativas pelo bem da minha terra, sempre a perder e a levar
pontapés.
Tenho dado muitos tombos, mas levanto-me sempre!”
Mário Mendes in "O Pregão" - 30/9/1992
A história de uma entrevista que "virou" depoimento
Há 26 anos, em Setembro de 1992, aprazei com Maria Dinis Pereira, a "Dinis Galucho", uma entrevista para o quinzenário "O Pregão" que se publicava em Castelo de Vide.
Conheço a Dinis desde que nasci e desde logo mil pensamentos me acorreram, ideias que transcrevi para um papel e que serviriam de "guia" para as perguntas que lhe iria fazer. Dar a conhecer a mulher, a criadora e dinamizadora cultural, a artista e artesã (ou vice-versa) eram os objectivos da entrevista. Tarefa não muito fácil, a de condimentar no espaço de uma página, o pensamento e a acção de uma mulher multifacetada. Os inúmeros apontamentos que levava tornaram-se quase inúteis, face à "memória vivida" da entrevistada e, perante a evidência, a "estratégia" passou por deixar falar, sem interrupções, quem tinha muito (e tem) para dizer. Sobre a sua vida e sobre a comunidade onde nasceu, cresceu e se fez "uma mulher de armas".
Contundente, mas pacífica.
Mário Mendes