A vida de Semedo dividiu-se entre a política e a medicina.
Destacou-se nos últimos anos pela defesa da despenalização da eutanásia e pela
proposta de uma nova Lei de Bases da Saúde. Antigo militante do PCP, onde lutou
pela renovação interna, liderou posteriormente o Bloco de Esquerda com Catarina
Martins.
O antigo líder do Bloco de Esquerda João Semedo morreu esta
terça-feira aos 67 anos, anunciou o partido. O médico, antigo deputado e
ex-candidato à Câmara Municipal do Porto lutava há vários anos contra um cancro
que fez com que perdesse a voz, reaprendendo a falar com a ajuda de uma
prótese. “Durante uma doença grave, importa mais a personalidade do que o
título ou a formação académica”, dizia numa entrevista ao PÚBLICO em 2016. O
corpo do antigo dirigente estará a partir das 17h00 na Cooperativa Árvore, no
Porto.
Semedo, que aderiu ao Bloco de Esquerda em 2007, destacou-se
nos últimos anos pela defesa da despenalização da eutanásia. Em Fevereiro deste
ano, por ocasião do debate no Parlamento em torno da morte medicamente
assistida, apelou a uma discussão racional, “sem medos”. Considerava-a “um
projecto democrático e humanista que não obriga ninguém, mas também não impede
ninguém”, e que tornaria a “democracia mais perfeita”. Depois de a proposta ter
sido chumbada, Semedo disse que a sua aprovação “é uma questão de tempo: não
foi agora, será na próxima legislatura”.
Da esquerda à direita, elogios a Semedo
Foi também um dos autores da nova proposta de Lei de Bases
da Saúde, tendo lançado com António Arnaut (que morreu em Maio) o livro Salvar
o SNS – Uma nova lei de bases da Saúde para defender a democracia.
O Bloco de Esquerda já veio expressar “as mais sentidas
condolências” à família de João Semedo, afirmando que a perda “é de todos os
que partilharam o seu ímpar e diversificado percurso, que com ele lutaram,
aprenderam e conviveram”, como também “é de todos o orgulho e a alegria de o
terem tido a seu lado”. A coordenadora bloquista, Catarina Martins, suspendeu a
sua agenda para esta terça-feira.
João Semedo nasceu a 20 de Junho de 1951 em Lisboa, onde
frequentou o Liceu Camões. A sua longa actividade política iniciou-se com a
tragédia das cheias de 1967, quando ainda andava no liceu, através da
mobilização estudantil no apoio às vítimas. "Foi um acontecimento muito
marcante para mim e para a minha geração, não sabia nem sequer imaginava como
se podia viver tão miseravelmente às portas de Lisboa", contava ao
PÚBLICO.
Mais tarde, em 1972, aderiu ao PCP através da União de
Estudantes Comunistas, e acabou por mergulhar na clandestinidade e por ser
preso pela PIDE por distribuir panfletos a exigir eleições livres. Em 1975,
licenciou-se na Faculdade de Medicina de Lisboa.
Mudou-se para o Porto e, a partir daí, o seu percurso
dividiu-se entre a política e a medicina. Entre 2000 e 2006, foi director do
Hospital Joaquim Urbano, no Porto.
Semedo militou no PCP até 2000, ainda que tenha entrado em
ruptura e saído do Comité Central em 1991, tendo lutado durante uma década pela
renovação do partido. No ano em que se desfiliou do partido, considerou que
“deixou de haver massa crítica no PCP para fazer a sua renovação”.
Após a saída de Francisco Louçã da coordenação do Bloco de
Esquerda, em 2012, João Semedo e Catarina Martins assumiram a liderança do
partido. Foi deputado pelo BE em três legislaturas, até renunciar ao mandato
por motivos de saúde, em Março de 2015. Regressaria brevemente à actividade
política como candidato à Câmara Municipal do Porto em 2017, acabando por
renunciar em favor de João Teixeira Lopes, novamente devido à doença.
“Tive a vida que escolhi, a vida que quis, não tenho nada de
que me arrependa no que foi importante, segui sempre a minha intuição, nunca me
senti a fazer o que não queria. Sim, fui muito feliz, sou e acho que
continuarei a ser”, admitia numa entrevista ao Observador, em 2017. “Nunca
desejei morrer, mas sempre achei que, se morresse, a morte me apanharia feliz
com a vida que tive.”
Unanimidade na reacção à morte
Marcelo Rebelo de Sousa lamentou a morte de João Semedo numa
elogiosa nota no site da Presidência da República: "Foi pelas escolhas que
fez que se destacou, sempre com uma afabilidade acentuada, convencendo pelo
exemplo, afirmando-se pela força do seu pensamento lúcido e clarividente. Até a
morte encarou com a firmeza e a bondade que o caracterizava, tendo afirmado
numa das suas últimas entrevistas que viveu como quis e que de nada do que é
importante se arrependeu. O país sentirá a sua falta".
“Ainda hoje me surpreende a facilidade, a rapidez com que
tudo implodiu” no Leste
Os elogios chegam, de resto, de todos os quadrantes
partidários. Ainda que o PCP tivesse inicialmente endereçado condolências ao BE
e à família de Semedo, sem tecer quaisquer considerações sobre o seu antigo
militante, o deputado comunista António Filipe acrescentou que Semedo “foi uma
personalidade muito marcante na vida política nacional”. “Tivemos com ele,
naturalmente, divergências e convergências, mas sempre uma excelente relação”.
É no entanto e sem surpresa do BE que chegam as homenagens
mais calorosas a Semedo. "Há muitas pessoas boas na política, mas o João
era extraordinário", afirmou a eurodeputada e antiga candidata
presidencial, Marisa Matias, ao Diário de Notícias. “É uma perda não só para o
Bloco de Esquerda, mas para o país inteiro pela maneira como se bateu por
causas muito importantes. Era um homem muito bom, com um coração gigante”,
disse.
“Um lutador, convicto, pelos seus ideais, pelos valores da
Esquerda, dos maiores defensores do SNS. Não negava um bom debate e isso
obrigava a aprofundar ideias, limar argumentos. Mesmo com opiniões diferentes,
o que também aconteceu, fazia que fossemos melhores”, escreveu o deputado
bloquista Pedro Filipe Soares nas redes sociais.
À TSF, o antigo líder parlamentar do BE José Manuel Pureza
recordou Semedo como "um campeão da dignidade" e "um lutador
abnegado, determinado e elegante, que deixava uma marca de elevação nas
relações que fazia com toda a gente".
O Bloco de Esquerda publicou ainda um vídeo de homenagem a
João Semedo nas redes sociais.
in "Público"