Há dias, no Parlamento, o CDS não se associou a um voto
de pesar pela morte de Varela Gomes, um militar que combateu, de armas na mão,
a ditadura salazarista. Imagino que o pretexto tenham sido as atitudes dessa
figura, no período mais conturbado do pós-25 de Abril.
Alguma direita portuguesa passa o tempo a queixar-se de
que a esquerda a acusa de colagem ao regime anterior mas, como se vê, perde
ensejos preciosos para afastar esse estigma. Isso acontece tanto na ação
política como na produção intelectual. Alguma nova historiografia edulcora os
crimes do regime salazarista, carregando os tons, em contraponto ácido, nos
malefícios da República que o antecedeu. O que esses historiadores dizem de
Afonso Costa e correligionários não diverge muito da versão diabolizada que nos
foi impingida pelos "historiadores" da ditadura. Depois, não se
queixem!
A eleição de Marcelo Rebelo de Sousa deixou alguma
esperança de que, com o tempo, ele pudesse ajudar a direita portuguesa a sair
desse seu complexado "gueto". Nada era expectável de Cavaco Silva,
por razões que escuso de desenvolver. Mas seria muito interessante que o
segundo presidente civil oriundo da direita política usasse da sua autoridade
para ajudar esse mesmo setor a distanciar-se do regime que vigorou até 1974.
Marcelo Rebelo de Sousa nasceu no seio de uma família do
Estado Novo. O seu pai, governante com Salazar e Caetano, esteve, contudo,
longe do perfil radical de algumas figuras desse tempo. Foi mesmo um governador
colonial dotado de abertura de espírito e dimensão social na ação. O jovem
Marcelo, ainda em ditadura, revelou-se moderadamente crítico do fechamento do
regime, enquanto jornalista do "Expresso". Mais de quatro décadas
depois, o presidente Marcelo já teve gestos muito louváveis na denúncia de
barbaridades coloniais e da escravatura.
Na morte de Varela Gomes, o presidente da República
qualificou contudo o regime ditatorial com uma bizarra "trouvaille"
semântica - uma "ditadura constitucionalizada". O professor Marcelo
prevaleceu sobre o chefe de Estado. Ora a ditadura foi "apenas" uma
ditadura: com censura, polícia política, perseguições, prisões, torturas e
mortes.
Alguns dirão, em abono do presidente, que a personalidade
de Varela Gomes não ajudava a uma generosidade no gesto. O militar foi um
revoltoso no 25 de novembro e era defensor de um modelo de sociedade política
muito diferente daquela em que hoje vivemos.
A dimensão das figuras de Estado mede-se precisamente
pelo modo com sabem elevar-se acima das polémicas do passado. Esta foi,
manifestamente, uma oportunidade perdida. Outras haverá. Esperemos o que o
presidente dirá um dia ao país numa visita ao Aljube, a Peniche ou ao Tarrafal.
Francisco Seixas da Costa in “Jornal de Notícias” –
9/3/2018