O país onde esta mulher voltará a pisar ainda não existe.
Sem o ainda estamos todos mortos. Acredito totalmente nesse país.
O Rio de Janeiro conhece a morte violenta. Conhece as
balas perdidas, os tiroteios, os ajustes de contas, as execuções. E quem vive
na favela conhece isso desde que nasceu, diariamente. Sabe que é muito possível
vir a morrer assim, tem muitos lutos, muitas mortes. Uns quinhentos anos de
mortes violentas, sobretudo negras, sobretudo pobres.
Foi esta cidade que há um mês se viu ocupada por
militares, a mando de um presidente da república não-eleito, alegadamente para
fazer face ao crime. Depois do golpe na presidência, o golpe na cidade que é a
cara do Brasil. O crime de Estado tem esta tradição de se justificar pelo
crime. O presidente não-eleito, Michel Temer, assinou essa ocupação. O Rio de
Janeiro é desde então uma cidade ocupada, num país ocupado. Todos os dias algo
se soma ao horror. Chegam amigos de lá, ou mensagens de amigos, vejo as
notícias, horror atrás de horror.
E ontem, 14 de Março, aconteceu uma morte violenta que
imediatamente se tornou o espelho em que o Rio se viu, o Brasil se viu, os
brasileiros pelo mundo se viram, e quem ama o Brasil, em geral. Toda a morte
violenta é horrível, mas algumas, raras, são uma visão colectiva do horror. Foi
isso que aconteceu esta quarta-feira à noite. A morte de Marielle Franco é um
espelho voltado para a cara do Brasil. E para todos nós.
Marielle faria 39 anos em Julho. Nasceu na
Maré, o complexo de favelas que qualquer recém-chegado pela primeira vez ao Rio
de Janeiro pode ver pela janela, ao vir do aeroporto para o centro. Chama-se
Maré porque aquilo eram águas da baía da Guanabara. Os primeiros moradores
moravam em barracas de palafita, ou seja, assentes em estacas, sobre a água.
Eram sobretudo nordestinos, vindos por causa da construção da Avenida Brasil, a
grande via terrestre de entrada no Rio de Janeiro. Hoje, a Maré é uma sequência
de favelas, coladas umas às outras, ao longo da Avenida Brasil. Tornou-se
também um dos centros fervilhantes de toda uma nova geração que cresceu com os
governos Lula. Lá estão o Observatório das Favelas e mil e um projectos,
lutando diariamente no meio da violência, do descaso do Estado que originou o
avanço do tráfico, e do abuso do Estado com o argumento de deter o tráfico.
Este é o berço de Marielle, assim ela se dizia: “cria da favela”.
Nasceu então favelada, negra, mulher. Três circunstâncias
que no Brasil tendem a andar juntas. Sobre o começo da adolescência, disse numa
entrevista: “Fui catequista e isso vai me compondo também quanto formação, e é
importante falar disso porque é uma parte que está presente em meu lugar.”
Depois: “Com 17 para 18 anos é um período que estou indo muito a baile, sendo
adolescente da favela que curte baile, torcida, farra, fugir da igreja pra ir
pro baile…”
Uma menina como tantas na Maré. Em 1997 terminou o ensino
médio, a seguir estudou numa escola pública à noite, a seguir tentou fazer um
Pré-Vestibular Comunitário, preparação para a universidade. “Seguindo a maioria
das meninas da favela, não fugindo a regra: engravidei com dezoito anos. Então
eu largo estudos porque mesmo com a mãe ajudando, não tinha como deixar, o foco
era cuidar da criança e não tinha ali esse lugar de um pai presente que
assumisse suas responsabilidades.”
Foi trabalhar, deixando a filha muito cedo na creche.
“Esse lugar da mulher que tem seis meses de aleitamento exclusivo mais férias,
eu não tive isso. Com três meses, a Luyara foi para creche.” Mas é a própria
existência da filha que a faz não desistir de estudar: “O estigma era que eu
iria ser mulher de bandido ou cometer delitos. Mas, no final, o que a Luyara me
dá é uma estrutura, um sentido de que eu deveria ir estudar e conseguir
sustentá-la e criá-la de uma maneira melhor.”
Marielle voltou ao pré-vestibular e conseguiu entrar na
PUC como bolseira integral. A PUC (Pontífica Universidade Católica) é a
universidade privada mais prestigiada do Brasil, caríssima para quem não tem
bolsa. Lá estudam muitos dos mauricinhos e patricinhas, como são chamados os
filhos da elite. Mas conheci de muito perto várias Marielles no boom de acesso
à universidade dos anos 2000, jovens, negras, da favela. Uma das minhas amigas
no tempo em que lá morei era justamente bolseira integral da PUC, de Ciências
Sociais, como Marielle. Digo era porque está mais do que formada, a mil e na
luta.
Sobre o tempo da PUC, Marielle falou assim: “Sempre fui
política, no sentido mais amplo. Quando entrei na PUC, em 2002, o meu lugar era
de reivindicar direitos, naquele momento só para a minha comunidade e para mim.
Cheguei muito arredia, ainda tomada pela sensação de pertencimento à favela. Eu
me distanciava muito das patricinhas, dos mauricinhos, porque afinal eram de
outra classe e outra renda. Mas aprendi a lidar com a diversidade. Fiz amigos,
amigas. Tenho lembranças muito boas.” Sendo que o quotidiano não era mole, não.
“Não vivi a PUC em sua completude. Eu já era mãe, então houve épocas em que
trabalhei em dois horários. Não vivi o movimento estudantil. Só o campus que
era impossível de não viver, porque sou apaixonada por ele, mas também era para
sentar e resolver algum trabalho ou para estudar mesmo.”
Tornou-se socióloga. Depois veio a fazer mestrado na UFF
(universidade pública, Niterói) com uma tese sobre Segurança Pública do Estado
do Rio de Janeiro, analisando especificamente as Unidades de Polícia
Pacificadora (UPP), então em
expansão. Mas aí já estava mergulhada na política.
O que levou Marielle a mergulhar na política foi uma bala
perdida em 2005, que matou uma amiga próxima, na Maré. Tornou-se uma activista
pelos direitos humanos e contra intervenções violentas na favela. Em 2006
estava na campanha que elegeu Marcelo Freixo para a assembleia estadual, pelo
PSOL (socialistas ex-comunistas). Freixo tinha-lhe dado aulas no
pré-vestibular, conheciam-se daí. Ela tornou-se assessora dele na assembleia,
depois passou à Comissão de Direitos Humanos, e em 2012 tornou-se coordenadora.
Faltava Marielle ir a votos. O que aconteceu na eleição
de 2016. Ela esperava uns 6000 votos, disse. Teve 46.502, fazendo uma campanha
como feminista, negra, gay, contra a violência policial. A quinta vereadora
mais votada do Rio de Janeiro.
A 16 de Fevereiro deste ano, quando Temer assinou a
ocupação militar do Rio, Marielle foi uma das vozes críticas.
A 28 de Fevereiro, foi nomeada relatora da Comissão da
Câmara de Vereadores, criada para acompanhar a intervenção do exército.
A 10 de Março, denunciou o aumento da violência de Estado
depois da ocupação e, de forma contundente, violência policial no bairro
suburbano de Acari. “O que está acontecendo agora em Acari é um absurdo! E
acontece desde sempre! O 41° batalhão da PM [Polícia Militar] é conhecido como
Batalhão da morte. CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos
jovens.”
A 13 de Março, anteontem, escreveu no Twitter: “Mais um
homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo
estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra
acabe?”
Ontem foi executada.
Há gravações de Marielle a falar ontem. Ela tinha ido a
uma iniciativa na Lapa, centro do Rio: “Jovens Negras Movendo as Estruturas.”
Basta ver um pouco para achar o carisma, a força, a beleza. Aquela carioca que
em pouco tempo deu corpo a um lema: o lugar da mulher é onde ela quiser.
Marielle saiu da Lapa no carro guiado por Anderson Pedro Gomes, de 39 anos, um
morador do subúrbio do Rio que se tornara motorista de Uber, e estava a cobrir
a baixa por acidente do motorista habitual de Marielle. Na zona do Estácio,
bairro central do Rio, um carro emparelhou com o deles, pelo menos nove tiros
foram disparados. Morreram Anderson e Marielle, com várias balas na cabeça. Não
houve roubo.
O choque do Rio, do Brasil e por aí fora não é só o
choque da morte súbita, violenta. Mariella não foi só morta de forma violenta,
como Anderson também foi. Foi executada — tudo indica, e é isso que parece tão
assustador — por ser tudo o que era: mulher, negra, favelada, gay, socialista,
eleita pelo voto, activa contra a ocupação militar e a violência policial no
Brasil de 2018. Todas as mortes não são iguais, todas as mortes são diferentes.
Algumas mortes são também, de facto, colectivas. Na dor, na angústia, no medo,
na raiva, e é isso que está a acontecer.
No momento em que escrevo, milhares de pessoas ocupam a
praça da Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro. Há protestos marcados em
série, incluindo em Portugal (onde à hora a que escrevo estão também marcadas
concentrações). A primeira urgência é que o crime seja esclarecido. E para onde
o crime aponta é o nó do Brasil: o que são e significam a Polícia Militar, o
Exército, a nostalgia da ditadura, as máfias que sustentam os usurpadores da
democracia, esse buraco negro que é o fascismo, o fascismo.
Caetano Veloso pegou no violão e gravou para Marielle
aquela sua canção que diz: “Estou triste, tão triste / e o lugar mais frio do
Rio é o meu quarto.” Por absoluto acaso vi isso no Facebook logo depois de um
poema na morte de Marielle que para mim ecoa aquele índio sonhado por Caetano
(“virá que eu vi”). Está assinado “Micheliny Verunschk, 15 de março de 2018, a manhã seguinte à
execução de Marielle Franco.”
Uma mulher
descerá o morro
como se descesse
de uma estrela
uma mulher seus
olhos iluminados
suas mãos
pulsando vida e luta
sob seus pés a
velha serpente
[a baba as armas
a covardia de sempre].
uma mulher
descerá o morro
as inúmeras
escadarias do morro
os muros arames
que separam o morro
e pisará o chão
desse país sem nome
desse país que
ainda não existe
desse país que
interminavelmente não há
uma mulher
descerá o morro
tempestade é o
vestido que ela veste
uma mulher
descerá o morro
e ainda que seu
sangue caia
ferida
incessante no asfalto do Estácio
e ainda que
anunciem sua morte
[e sim, ainda
que a comemorem]
esta mulher
ninguém poderá parar.
Não me saem da cabeça estas palavras: e pisará o chão
desse país sem nome, desse país que ainda não existe.
Sem o ainda estamos todos mortos. Acredito totalmente
nesse país.
Alexandra Lucas Coelho – 15/3/2018