Marx faz 200 anos. Lê-lo, querer compreendê-lo, é um
projeto difícil e frequentemente aborrecido. Talvez esse facto tenha
contribuído para a proliferação das suas várias interpretações caricaturais,
mais maldosas ou messiânicas, conforme o interlocutor. Não há, em nenhum dos
três volumes do Capital, encontro marcado com o fim do sistema capitalista. Há,
sim, fragmentos que formam a sua mais lúcida e desassombrada análise.
Já outros clássicos, como Adam Smith e David Ricardo,
tinham percebido que só o trabalho transformava matéria em mercadorias com
valor. Mas foi Marx que expôs o verdadeiro esqueleto social do processo
produtivo: o trabalho que produz é incorporado nas mercadorias mas alienado de
quem o despendeu, e essas mercadorias - apropriadas por quem controla o
processo produtivo - ganham uma existência própria. Individualmente, os
trabalhadores são anulados num processo cujas regras lhes são alheias e, ao
mesmo tempo, as mercadorias e os mercados por eles criados surgem como
entidades de vontade e poder (veja-se como os "mercados financeiros"
são caprichosos).
Ao contrário da mais básica premissa da teoria
neoclássica, o sistema económico não é feito de pessoas indistintas com igual
poder entre si. Há, objetivamente, quem apenas produza, e há quem seja dono
desse processo. Sim, duas classes, uma trabalhadora e outra capitalista. A
última não inicia o processo produtivo por achar que o Mundo precisa de mais
bens e serviços, mas com o objetivo de os vender, e assim realizar em lucro a
mais-valia obtida no processo produtivo. E a acumulação desse lucro é o que faz
este Mundo rodar.
Mas a acumulação capitalista é um processo cheio de
contradições. Quanto mais depressa acontece mais difícil é encontrar a procura
(consumo e investimento) que sustente as taxas de lucro. Sobretudo num contexto
de estagnação salarial e desigualdades, como tem vindo a acontecer desde os
anos 70, depois do esmagamento das conquistas laborais do pós-guerra. A dívida
e a finança têm suprido essas dificuldades: permitem aos trabalhadores consumir
acima do seu salário, dando ao capital o que produzir e onde investir; absorvem
a "liquidez" existente e multiplicam-na, alavancando-a em dívida,
investida em lucrativas atividades especulativas. Não é por acaso que as
grandes multinacionais hoje são também gigantes financeiros.
Mas um sistema dominado pela finança e pelas
desigualdades é, além de socialmente injusto, economicamente instável. As
crises do capitalismo não são nem percalços nem prenúncios do seu fim. São
elementos estruturais de um sistema intrinsecamente contraditório e em
permanente mutação, desde o tempo em que Marx o analisou.
Determinismo é achar que o capitalismo é o fim da
história, o nosso fado. E Marx não é fado, é compreensão do presente e futuro
por construir.
Mariana Mortágua in "Jornal de Notícias" - 20/3/2018