É um daqueles poços de sabedoria e de memória, senhora de uma arte perfeita.
Ana Curado Melato Zacarias, 79 novos joviais e bem conservados anos, casou com 17 anos num dia 2 de Abril e «não sabia fazer nada». «Era uma rainha» a filha do taberneiro Ti Adelino Sapateiro que era senhor da «taberna mais limpa de Nisa e melhor afreguesada», onde se apresentavam petiscos como bacalhau frito ou sardinhas assadas no forno e o café era feito em cafeteira de zinco.
Ana foi viver com o marido e teve uma grande mestra. «Maria da Cruz Basso Dias, a “Malhadinha”, era a melhor cozinheira dos Viscondes de Nisa e ela é que me ensinou». «Primeiro fazia à minha frente e depois se eu não fizesse bem, ela zangava-se comigo».
Entretanto Ana não queria ligação com a taberna do sogro, que era inferior à do pai e, com a aprendizagem de cozinha já sabia cozinhar muito bem. Então «a minha prima Maria Dinis “Sapateira”, que vendia leite porta a porta, disse-me para fazer bolos que ela os vendia e foi um sucesso».
Com esse sucesso e com o tempo «inventei as Nisas, parecidos com os pastéis de Tentúgal mas com amêndoa dentro».
Entretanto «o meu marido fez um restaurante, o Nisa Sol, que era aqui» na Estrada das Amoreiras, junto à Praça da República, e «foi o primeiro restaurante de Nisa» que se manteve a funcionar durante cerca de 20 anos.
Para além do trabalho normal do restaurante «fazia 48 refeições por dia para a Barragem do Fratel durante uns 12 ou 15 anos», fornecendo assim o almoço aos técnicos, vários estrangeiros, que trabalhavam, primeiro na montagem e depois na exploração da Barragem, e que depois vinham jantar ao restaurante. «Mas nas quintas-feiras eram 67 com os estrangeiros» e por isso «ganhámos muito dinheiro».
D. Ana lembra algumas curiosidades, como os estrangeiros querem as galinhas só com manteiga por não estarem habituados ao azeite (que diziam que era só para esfregar a barriga), ou de misturarem as frutas com leite e de comerem muito queijo.
Ao longo de uma intensa vida de trabalho teve mais de 70 empregadas e um caderno aprumado contém esse registo e muito mais da história da sua vida, numa letra bem desenhada e numa escrita escorreita das quartas classes de quando se aprendia a ler, a escrever e contar.
Começou também a fazer gelados e «tinha carrinhos a vender gelados pela vila».
Com o 25 de Abril «disseram que os empregados tinham de ficar com parte do restaurante» e as coisas a partir daí começaram a ser difíceis de gerir, de modo que o restaurante acabou por encerrar.
Na ampla cozinha de sua casa e que é a cozinha do antigo restaurante, onde na mesa central de mármore nos deliciámos com as melhores empadas do mundo e os melhores barquinhos de Nisa – isto tendo entrado a convite de outra pessoas e sem sermos esperados ou sequer conhecidos – ficámos a conhecer um pouca da história de vida de D. Ana, que se cruza com a história de Nisa e do seu património imaterial que é a cozinha tradicional.
As empadas, os barquinhos, os bolos de amêndoa, «dizem que são os melhores de Nisa», e se não há melhor é porque «a manteiga dos folhados não é vendida», ou seja, só é em quantidades que impede que seja usada em termos domésticos, pois hoje a D. Ana só faz as suas especialidades para algum amigo que lhe peça e para oferecer.
Não é por acaso que Manuel Luís Goucha tem uma grande veneração pela D. Ana e de cada vez que ouve falar em Nisa fala sempre no seu nome.
Manuel Isaac Correia in "Alto Alentejo" - nº 151