30.11.11

ESCRITORES DO CONCELHO (2)

CHÁVENAS DE CAFÉ QUASE AMARGO
- Cruz Malpique
AGIR
Agir é operar sucessivos golpes de Estado. Quem se dispõe a sair da indiferença ou da neutralidade tem que vibrar um cerce e nítido golpe à oposição, como quem diz às ideias ou aos sentimentos que se oponham ao seu pontapé de saída.
E para agir não basta ter límpida ideia do caminho a seguir. É preciso que a ideia se forre de intenso sentimento. Quando o poeta pagão dizia que via o bem que adorava e seguia o mal que detestava -- talvez não dissesse uma verdade psicológica. Aquele ver o bem era ideia pura, desimpregnada de poderoso sentimento dinâmico. Aquele adorava era puramente literário, platónico, aéreo, porque, se fosse um adorar de fé -- da tal fé que move montanhas--, venceria, provavelmente, o pendor para o mal.
Conhecer o bem é dispormos da luz que nos ilumina o caminho que lá vai dar. Mas como sair da nossa inércia, se esse conhecimento não for propelido pelo sentimento?
A não ser que se diga, como Fouillée, que toda a ideia é uma força e que, portanto, contém em si própria a soma de sentimento necessária para se efectivar.
Não afirmamos que uma ideia seja inteiramente limpa de afectividade, e que um sentimento não possua algo de ideia. O que nos parece verdadeiro, em todo o caso, é que há ideias debilmente sentimentais, e daí a grande inércia em que elas nos deixam.
BILHETE DE IDA E VOLTA PARA A REFORMA
Alguns amigos encontraram o escultor chorando junto da sua estátua, e perguntaram-lhe se não estava satisfeito com a sua obra.
-- Satisfeito estou. E é justamente por isso que choro. Se não encontro sombra de defeito na minha estátua é, forçosamente, porque já entrei em decadência. Artista que não anseia ultrapassar-se, está tirando bilhete de ida e volta para a reforma...
SUBIR, CAIR...
A respeito do poeta inglês João Dryden, escreve um dos seus biógrafos:
"Não se deve negar que tropeçou frequentemente em seu caminho, na juventude e na velhice; que muitas vezes caiu abaixo de seus próprios ideais; que deu até a impressão de contradizer-se e que foi, na verdade, inconsequente. Os admiradores de Dryden mais de uma vez lamentaram tais extravagâncias."
E Dryden, sabendo que lhe reparavam nestas contradições, que dizia? Respondia como homem de carne e osso: "Sou homem, devo ser variável; às vezes, mesmo os homens mais sérios o são, em circunstâncias até ridículas. As nossas inteligências são perpetuamente afectadas pela disposição dos nossos corpos, o que me faz suspeitar que a inteligência e o corpo estão mais intimamente unidos do que os nossos filósofos e teólogos o querem admitir.
Um pesadelo ou um dia anuviado têm o poder de modificar esta desgraçada criatura, tão orgulhosa de possuir uma alma racional, e de fazê-la pensar o que ontem não pensava."
Assim falou o poeta, e sem rebuços se exprimiu. Falou por si, e por boa maioria das humanas criatura. Na verdade, assim somos: ora prendemos o nosso destino a uma estrela, ora nos afundamos nos abismos da torpeza; ora fazemos altos programas de perfeição, ora atiramos os mesmos programas às malvas; afirmamos, agora, um peremptório sim, ditado do fundo da alma, e logo o negamos, arrastados pelas misérias do nosso corpo.
Em muitíssimos casos, a nossa alma põe, mas vem o corpo, com o seu peso de toneladas, -- e dispõe. Somos agora pó levantado em nossos superiores desígnios, e logo pó caído em nossos desfalecimentos.
A alma humana seria a perfeição das perfeições, se o corpo de carne e osso nunca tivesse existido, nem mesmo na... tradição oral.