12.1.24

TEXTOS DE AUTORES NISENSES: O Meu Bisavô do Monte Cimeiro

É o ano de 1840. Na Coutada, Freguesia de Nª Sr.ª da Conceição, concelho de Vila Velha de Ródão nasce Isabel Maria. Em Nisa, na Freguesia do Espírito Santo, nasce Catharina Louro. O destino de ambas as raparigas passou pela Freguesia de São Simão.
Em 1858 Isabel casa com Domingos Vaz, natural do Monte Cimeiro. O casal fica a residir nesse Monte e deste casamento nasce uma criança a que chamam José Vaz. Também Catarina abandona a terra onde nasceu. Deixa Nisa em 1857 para contrair casamento com Luiz Carrilho, um jovem de Pé da Serra. Desta união nasce Maria Carrilho em 1860. Maria desloca-se a Nisa com frequência para visitar os avós maternos. Numa das deslocações conhece José Vaz. Maria e José casam-se em 1881 e fixam residência no Monte Cimeiro.   
É o dia de Natal de 1887, a Serra de São Miguel já esconde o astro rei, o frio já se faz sentir, não tarda é noite. Maria passou o dia com dores, há um bebé que quer nascer. José desloca-se à pressa ao Pé da Serra. Bate à porta dos sogros, ofegante, mal consegue respirar, pede ajuda. O seu filho está prestes a nascer. Catarina está a cear mas já não termina. Cobre-se de agasalhos e parte com o genro para o Monte Cimeiro. O dia de Natal de 1887 está quase a terminar. A nossa nisense e o genro fazem o caminho em três tempos. Já se avistam as casas do pequeno Monte, Maria agoniza com dores. São duas da manhã do dia 26 de Dezembro de 1887. O choro de uma criança quebra o gelo da noite. A noite é fria, o céu está limpo, as estrelas brilham no infinito. O menino já tem nome. A sua graça é Luiz, Luiz Vaz. A saúde da criança é debilitada. Por estar em perigo de vida, o pároco de São Simão é chamado à pressa para o baptizar. Luiz agarrou a vida o que permitiu a outro Luís (seu bisneto) escrever este texto, decorridos 120 anos. 
Estamos em 1893, o pequeno Luiz Vaz tem agora seis anos. No outro lado da Serra, na Vinagra, nasce a sua futura esposa, Isabel Toco, filha de um casal de pastores, Isabel Rosa e José Filippe Cardoso. Isabel contrai casamento com Luiz Vaz em 1912 e ficam a morar na Vinagra. É na Vinagra que nascem os primeiros quatro filhos, José Filipe em 1914, Domingos em 1916, Maria em 1919 e José em 1922. Em 1925 a família desloca-se da Vinagra para o Monte Cimeiro, onde em 1926 nasce a última filha, Isabel Toco Vaz, (minha avó) – A fotografia que ilustra o texto foi a casa que habitaram. Por motivos de trabalho, na Junta Autónoma das Estradas, em 1927 Luiz Vaz desloca-se com a família para residir em Nisa e aí permanecem cinco anos. 
Desenvolvem amizades com outras famílias de Nisa. Destaco a grande amizade com a família Melato. Álvaro Curado Melato, sapateiro de Nisa, sua esposa, Maria Toco Pires (natural da Vinagra) e os filhos, Joaquina Melato, Adelino Melato e José de Oliveira Melato. Adelino e José de Oliveira viriam a ser dois mestres na arte de sapateiro. José de Oliveira Melato, já doente, sempre que me encontrava falava-me neste meu bisavô. Dizia-me José de Oliveira: Sabes de onde vem a amizade entre as nossas famílias? “A nossa amizade nasceu no Monte Cimeiro…”.
Em 1932 a família Vaz muda-se definitivamente para o Monte Cimeiro.
Era miúdo quando a minha avó me levou à Serra de São Miguel para conhecer o Monte e a casa onde nascera. Albardamos o burro e lá fomos. Quando chegamos e deparei com aquela casa de pouco mais de dois metros de frente, a primeira reacção foi de choque.
Imaginava a casa pobre, mas não tanto. Foi a primeira vez que tomei consciência das dificuldades destes povos. Uma pequena sala de entrada comunicava, em frente para um quarto interior e para um espaço à esquerda desprovido de tecto, utilizado como cozinha. No piso superior existia apenas um compartimento. A minha mente estava cheia de interrogações. Tudo tão reduzido para sete pessoas. Foi-me explicado pela minha avó que o quarto era para o casal e o espaço superior utilizado pelas duas filhas. Pergunto imediatamente: E os tios? A resposta da minha avó: “Nessa época os homens dormiam no campo ou em palheiros”. A casa onde nascera a minha avó não era nada do que esperava encontrar. Em Salavessa estava habituado a ver casas pequenas, que todavia eram superiores a esta. Tive vontade de chorar quando tomei consciência desta realidade. Percebi que o “mundo” nem sempre fora tal como eu o conhecia. Hoje nas noites frias, penso por vezes nos tempos em que os filhos tinham que deixar a casa dos pais por não terem um quarto para dormir.
Seguiram-se as histórias da minha avó, sabia tudo. Quais as famílias que ali habitaram. Cada canto, cada pedaço de terra tinha uma história. 
Muitos episódios se apagaram na minha memória, mas há um que não esqueci:
Era o ano de 1925. As famílias tinham por hábito engordar um porco, algo muito importante na sua estrutura económica. A família Vaz não era excepção. O animal estava quase pronto para o abate, eis que desaparece da furda. Sabia-se que nessa manhã um grupo de ciganos tinha passado nas proximidades do Monte a caminho da Beira. 
Luiz Vaz, o patriarca da família inicia então uma perseguição a este grupo de malfeitores. Seguindo-lhes o rasto, chegou à Fonte de São Simão na Estrada para Vila Velha. O acampamento tinha acabado de sair. Neste local deixaram o animal morto, retirando à carcaça apenas algumas partes. Vendo o meu rosto de admirado a minha avó interrompe a história. “O que eu estou a contar é tudo verdade, tantas vezes o ouvi ao meu pai”. Luiz Vaz queria que lhe pagassem o prejuízo e segue a pista dos ladrões. Na descida para o Tejo passa pelo Monte do Sr. José dos Santos, pede uma espingarda emprestada e sete cartuchos. Passa o Tejo numa Balsa. Interrompo novamente a minha avó. “Sempre a pé”? “Ele andava muito. Era rápido. Muito rápido. Mais rápido que o vento”. Já era noite quando chegou aos Perais, mas os amigos do alheio também não pararam nos Perais, seguem para o Monte Fidalgo. A perseguição só terminou em Malpique do Tejo onde finalmente a caravana cigana se fixou. 
Luiz Vaz dirigiu-se ao Posto da Guarda, os responsáveis foram detidos, condenados e sentenciados com dois anos de prisão. A pena foi cumprida na cadeia de Nisa. Desde o interior da cadeia os detidos enviavam recados de ameaças de morte para Luiz Vaz. Facto que, felizmente, nunca se concretizou.
As casas do Monte Cimeiro estão dispostas ao longo de uma rua em forma de letra U, mas invertido. Estas casas têm a particularidade de comunicar umas com as outras através de um sistema de portas internas. Essas portas foram posteriormente tapadas pelos habitantes. Qual teria sido o objectivo dessa intercomunicação? Tratar-se-ia de uma estrutura comunitária, defensiva? Terminada a visita regressámos a Salavessa. Na semana seguinte voltei ao mesmo local para mostrar as casas a um amigo. Na encosta vejo o vulto de um homem que grita pelo meu nome. À medida que se aproxima vejo que se trata do meu tio-avô José Filipe. Na frescura dos seus setenta anos caminhava completamente curvado, com as mãos apoiadas sobre os joelhos. Conhecendo bem as veredas. Encosta a baixo, deslocando-se com rapidez. Curvado mas rápido, muito rápido, mais rápido que o vento. Cumprimentou-me e ofereceu-me uma maçã.
Só anos mais tarde meditei sobre este gesto. Alguém que me reconhece ao longe e vem ao meu encontro para me oferecer fruta. Um gesto que simboliza a Alma Grande destas gentes.
Novembro de 2005 – Volto ao Monte Cimeiro. Passaram vinte e cinco anos desde a última visita. Muitas casas estão caídas. Fixo o olhar na encosta da Serra – talvez à espera que alguém apareça. Já não desce ninguém. Já é quase noite, não tarda o dia é uma memória. O silêncio é ensurdecedor. Observo as ruínas e consigo ouvir os seus lamentos. As velhas paredes parecem querer dizer-me algo. Escuto-as com atenção. Dizem-me que estão sem forças. Dizem-me que tudo mudou.
Tudo mudou desde o longínquo ano de 1858. Ano em que a jovem Isabel Maria, natural da Coutada, Vila Velha de Ródão, aqui chegou para contrair casamento com Domingos Vaz. Dizem-me que o Monte estava em festa e a noiva era bonita. Tento confortá-las, prometo voltar outro dia, prometo contar a sua história. As velhas paredes continuam os seus murmúrios. Dizem-me que ao longo destes 150 anos o tempo passou num ápice. Rápido. Muito rápido. Mais rápido que o vento. 
 
Em Memória de Luiz Vaz ( 1887 – 1967 ) 


 * Luís Mário Correia Bento