2.11.23

NISA: Polo Museológico Augusto Pinheiro (finalmente) inaugurado

NÃO HÁ MAL QUE SEMPRE DURE...
E pronto. Já está! Anos e anos a fio, desde 1989, pelo menos, o sonho e a promessa de concretização do espaço físico do Museu - vamos chamar-lhe mesmo Museu, porque isso de "pólos" dá ideia de que há outras estruturas similares na mesma área - acabaram por concretizar-se. Uma obra colectiva, simples por um lado, atraente e acolhedora, por outro, foi inaugurada no passado sábado. Por obra e graça da Santa Casa da Misericórdia de Nisa, instituição  a quem tinha sido cometido essa obrigação moral e afectiva. Houve, finalmente, "um pagador de promessas" que a concretizou, mas a obra de grande significado  artístico, cultural e memorial, sobretudo, representou a transformação de um edifício antigo, numa estrutura museológica de grande significado para Nisa, perpetuando a memória de uma artista "naif", simples e ingénuo, dos melhores que se apresentaram em salões de arte e exposições, tanto a nível nacional como internacional. E, saliente-se,  a revitalização dos antigos palheiros, foi operada, totalmente, pela "prata da casa": operários electricistas, pedreiros, carpinteiros que respeitaram a concepção arquitectónica e artística dos responsáveis do projecto.
Mais de 30 anos depois, o sonho tornou-se realidade. O António Maria Pinheiro já pode, agora, dormir um pouco mais descansado. A obra inaugurada no sábado, na antiga Rua de S. Pedro (esse devia ser o seu nome, sempre) respeita, enaltece e projecta o nome  e a obra do grande pintor nisense, que um dia tive o privilégio de entrevistar. O sonho comanda a vida. O professor Carlos Cebola, infelizmente, já não o viu concretizado, mas, nós, nesta e noutras páginas, iremos dar a conhecer os textos que escreveu sobre o pintor Augusto Pinheiro. 
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NO PRIMEIRO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO PINTOR AUGUSTO DINIS PINHEIRO (I)
"Chamava-se Augusto e nascera, ali, à sombra das muralhas afonsinas (de Dom Afonso IV) e não dionisinas ( de Dom Dinis), como sempre lhe haviam ensinado.
Também lhe tinham ensinado a história fantástica de uma Vila, vítima da lealdade do seu Rei e que, por isso mesmo, fora destruída pelos inimigos d´el-Rei, não ficando, dela, pedra sobre pedra.
Tinham-lhe ensinado, ainda, que, em recompensa de tal feito, de tanta abnegação, dedicação e lealdade, o mesmo Rei edificara uma nova Vila, a que dera o seu próprio nome, em sítio mais ameno, para substituir aquela que, por ele, tudo sacrificara.
História linda, sem dúvida.
Mas isso era assunto de somenos importância: até porque ele, pouco acreditando, certamente, na história, menos se interessava por lendas e toda aquela narrativa épica mais não tinha que o sabor de um conto de fadas: um conto das Mil e Uma Noites, a que só faltavam a lâmpada de Aladino e o tapete voador.
Coisas de que ele nem precisava, aliás.
Sem lâmpada e sem tapete, o Augusto pairava, havia tempos, muito acima da torre mais alta de quantas restavam, ainda, da medieva fortaleza - a torre da Porta de Montalvão - um colosso de pedra, sobre a rocha dura; padrão altaneiro e marco imorredoiro; verdadeiro símbolo de uma identidade com séculos de História.
Uma "história" em que continuava a não pensar.
Ou, se pensava, era muito pouco.
Para ele, importante era ser capaz de distinguir correcta e perfeitamente todas e cada uma das cores do arco-íris quando em certas tardes de inverno esse tal arco aparecia por cima daquilo que ainda restava duma vetusta muralha perdida entre quintais e empenas de casas (tão velhas como ela), ou quando passava, filtrado, através das altas ramagens do venerando eucalipto do Rossio.
E ele menino perdia-se naquele emaranhado de luz e contra luz naquela amálgama de cor e claro escuro naquela teia desenhando figuras fantasmagóricas que o sol coado por entre as folhas verdes atirava para o espaço onde o céu era uma tela azul omnipresente e em fundo.
E era capaz de ficar horas, nisto.
De tal modo que não deu porque fora crescendo largando os calções vestindo calças fazendo a quarta classe e entrando na vida à procura de emprego.
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Naqueles tempos nada era como hoje.
Emprego era coisa que não faltava assim se quisesse e gostasse ( ou não quisesse e não gostasse) de ser alfaiate, barbeiro, marçano ou sapateiro.
Isto, sem entrarmos na área campesina ou na da construção civil.
Mas o Augusto não nascera para trabalhos pesados: franzino demais, para grandes esforços; por demais delicado para tarefas rudes.
Mas era preciso e foi: para o comércio.
E no comércio fez vida e carreira.
Uma carreira discreta, com altos e baixos, correntes e decorrentes: monótona, ao fim e ao cabo, com papéis (muitos papéis), o deve e o haver, balanços e mais balanços, à ordem de V. Excelência, saldos, de V. Excelência atento, venerador e obrigado.
Chatices.
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A vida ia passando, sem sobressaltos, mas o Augusto, com vinte, quarenta e sessenta anos, continuava a ser, lá por dentro, o mesmo menino que não desistia de perseguir um sonho, não desistia de espreitar uma nesga de céu, mesmo e principalmente quando as nuvens lhe não deixavam ver o azul, onde ele gostava de entornar as cores: todas as cores do arco-íris: o arco-da-velha, dos tempos de menino:

"Arco da velha,
vamos a ela,
pô, pô, pô..."
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Até que um dia não aguentou mais.
Quando a notícia veio cá para fora, apanhando todos de surpresa, nem os profetas da desgraça ousaram falar do facto.
Mas perguntaram-se:
"Então, como era? Como é que um comerciantezeco, desconhecido, com a provecta idade de sessenta e seis anos, agora, sem mais nem menos, ousava apresentar-se qual homem de paleta e pincéis, na praça pública?"
"Quem era, afinal, esse novo aprendiz de feiticeiro, surgido, assim, das brumas de um passado, a todos os títulos, ignoto?"
Desportivamente, os críticos e os outros pagaram para ver.
Três anos de espera.
O Augusto não aguentou mais e realizou a sua primeira exposição individual, e em Lisboa, evidentemente.
Não terá sido o apocalipse mas foi, desde logo, um sério aviso à navegação: porque, depois, num ritmo impressionante, as exposições sucederam-se, quase ininterruptamente.
Para espanto dos mais distraídos, choveram os convites, as distinções, as escolhas, as selecções, as menções, os prémios e... "se mais houvera..."
Entretido com as tarefas de uma profissão que abraçara, desde menino, o Augusto chegou tarde ao fascinante mundo das Artes: ao reino deslumbrante das Formas, das Cores, do Claro-Escuro, da Fantasia: ao fabuloso reino da Pintura.
Mais tarde ( e como é triste dizê-lo) só muito mais tarde, o Augusto começou a pintar telas com todas as tonalidades do azul (em fundo), para sobre ele (azul) lançar deuses, homens, aves, insectos, árvores e flores. Muitas flores.
Todas as flores de um mundo só seu e que guardara, durante dezenas de anos, bem fundo, no mais íntimo de si mesmo, envoltas numa atávica evocação das rendas, dos bordados e das cantarinhas pedradas, que a Cultura e a Arte da sua Vila natal haviam arrecadado nele, desde a primeira hora.
E pronto.
A sua força criadora, titânica, singela e poética, a um tempo; a notável qualidade, bem patente em cada um dos seus quadros; o raro nível da sua pintura, claramente, reconhecido em Lisboa (1974/ 77/ 78/ 79 e 81), em Madrid (1976), em Badajoz (1977), no Estoril (1979/ 80/ 81 e 85), no Funchal (1979), em Viena de Áustria (1979), em Castelo Branco (1981), em Faro (1981), por exemplos, fizeram do Augusto um nome que, hoje, é referência obrigatória, sempre que se fala da Pintura Naif, em Portugal.
***
O Augusto - Augusto Dinis Pinheiro - faleceu no dia 18 de Outubro de 1994 na sua terra natal: Nisa, onde nascera, num dia 22 de Agosto de 1905.
E faleceu, ali, numa casa nobre, que fora solar dos nobres, onde ele, um verdadeiro rei, vivera os últimos anos da vida, à sombra das muralhas afonsinas (de Dom Afonso IV) e não dionisinas ( de dom Dinis), como sempre lhe haviam ensinado.
O acontecimento terá passado despercebido dos grandes "media" mas, para o Augusto, também, isso era, de somenos importância.
Ele continuava a pairar, lá, muito acima da torre mais alta de quantas, ainda, restam da velha fortaleza: a torre da Porta de Montalvão, o tal padrão de uma identidade com oito séculos de História.
E a sua obra ia (e vai) ficar (mesmo quando a torre já não for torre), como um raio de sol, um pingo de cor, um sopro de alegria, um grito de amor, um hino à vida: ainda que tão mal lembrada, numa crónica como esta, quase como se fora um dos contos do Canto do Adrião.
* Carlos Tomás Cebola - Montemor-o-Novo, Fevereiro de 1995