"Nós, ucranianos, devemos ser solidários não com os opressores, mas com aqueles que vivem e resistem à opressão", afirmam mais de 350 académicos, ativistas e artistas ucranianos. Leia aqui a carta aberta.
Nós, investigadores, artistas, ativistas políticos e laborais ucranianos e membros da sociedade civil, estamos solidários com o povo da Palestina, que há 75 anos está sujeito e resiste à ocupação militar israelita, à separação, à violência colonial dos colonos, à limpeza étnica, à expropriação de terras e ao apartheid. Escrevemos esta carta de povo para povo.
O discurso dominante a nível governamental e mesmo entre os grupos de solidariedade que apoiam as lutas dos ucranianos e dos palestinianos cria muitas vezes a separação. Com esta carta, rejeitamos essas divisões e afirmamos a nossa solidariedade com todos os que são oprimidos e lutam pela liberdade.
Enquanto ativistas empenhados na liberdade, nos direitos humanos, na democracia e na justiça social, e embora reconhecendo plenamente as diferenças de poder, condenamos firmemente os ataques a populações civis - sejam elas israelitas atacadas pelo Hamas ou palestinianos atacados pelas forças de ocupação israelitas e pelos bandos de colonos armados. O ataque deliberado a civis é um crime de guerra.
No entanto, isso não é justificação para a punição coletiva do povo palestiniano, identificando todos os residentes de Gaza com o Hamas e a utilização indiscriminada do termo "terrorismo" aplicado a toda a resistência palestiniana. Também não é uma justificação para a continuação da atual ocupação. Fazendo eco de múltiplas resoluções da ONU, sabemos que não haverá paz duradoura sem justiça para o povo palestiniano.
No dia 7 de outubro, assistimos à violência do Hamas contra os civis em Israel, um acontecimento que é agora apontado por muitos para demonizar e desumanizar a resistência palestiniana no seu todo. O Hamas, uma organização islamista reacionária, tem de ser visto num contexto histórico mais vasto e em décadas de invasão de terras palestinianas por Israel, muito antes de esta organização ter surgido no final da década de 1980.
Durante a Nakba ("catástrofe") de 1948, mais de 700.000 palestinianos foram brutalmente deslocados das suas casas, com aldeias inteiras massacradas e destruídas. Desde a sua criação, Israel nunca mais parou de prosseguir a sua expansão colonial. Os palestinianos foram forçados ao exílio, fragmentados e administrados sob diferentes regimes. Alguns deles são cidadãos israelitas vítimas de discriminação e racismo estruturais.
Os que vivem na Cisjordânia ocupada são submetidos a um apartheid durante décadas de controlo militar por parte de Israel. A população da Faixa de Gaza tem sofrido com o bloqueio imposto por Israel desde 2006, que restringiu a circulação de pessoas e bens, resultando numa pobreza e privação crescentes.
Desde 7 de outubro e até ao momento em que este texto é escrito, o número de mortos na Faixa de Gaza é superior a 8.500 pessoas. As mulheres e as crianças representam mais de 62% das vítimas mortais, enquanto mais de 21.048 pessoas ficaram feridas. Nos últimos dias, Israel bombardeou escolas, zonas residenciais, uma igreja ortodoxa grega e vários hospitais. Israel também cortou todo o abastecimento de água, eletricidade e combustível na Faixa de Gaza. Há uma grave escassez de alimentos e medicamentos, provocando um colapso total do sistema de saúde.
A maior parte dos meios de comunicação ocidentais e israelitas justifica estas mortes como meros danos colaterais da luta contra o Hamas, mas não fala dos civis palestinianos alvejados e mortos na Cisjordânia ocupada. Só desde o início de 2023, e antes de 7 de outubro, o número de mortos do lado palestiniano já tinha atingido os 227. Desde 7 de outubro, 121 civis palestinianos foram mortos na Cisjordânia ocupada. Mais de 10.000 prisioneiros políticos palestinianos estão atualmente detidos em prisões israelitas.
A paz e a justiça duradouras só são possíveis com o fim da ocupação atual. Os palestinianos têm o direito à autodeterminação e à resistência contra a ocupação israelita, tal como os ucranianos têm o direito de resistir à invasão russa.
A nossa solidariedade vem de um lugar de raiva perante a injustiça e de um lugar de profunda dor por conhecer os impactos devastadores da ocupação, do bombardeamento de infra-estruturas civis e do bloqueio humanitário a partir da nossa experiência na nossa terra natal. Partes da Ucrânia estão ocupadas desde 2014, e a comunidade internacional não conseguiu travar a agressão russa nessa altura, ignorando a natureza imperial e colonial da violência armada, que consequentemente se agravou em 24 de fevereiro de 2022.
Os civis na Ucrânia são bombardeados diariamente, nas suas casas, nos hospitais, nas paragens de autocarro, nas filas para comprar pão. Como resultado da ocupação russa, milhares de pessoas na Ucrânia vivem sem acesso a água, eletricidade ou aquecimento, e são os grupos mais vulneráveis que são mais atingidos pela destruição de infraestruturas críticas. Durante os meses de cerco e bombardeamento pesado de Mariupol, não existia qualquer corredor humanitário.
Ao ver os israelitas a atacar as infra-estruturas civis em Gaza, o bloqueio humanitário israelita e a ocupação do território ressoam de forma especialmente dolorosa em nós. A partir deste lugar de dor, de experiência e de solidariedade, apelamos aos nossos compatriotas ucranianos em todo o mundo e a todos os povos para que levantem a voz em apoio do povo palestiniano e condenem a limpeza étnica em massa que Israel está a realizar.
Rejeitamos as declarações do Governo ucraniano que expressam apoio incondicional às operações militares de Israel e consideramos tardios e insuficientes os apelos do MNE ucraniano no sentido de evitar vítimas civis. Esta posição representa um recuo em relação ao apoio aos direitos dos palestinianos e à condenação da ocupação israelita, que a Ucrânia tem seguido ao longo de décadas, incluindo nas votações na ONU.
Conscientes do raciocínio geopolítico pragmático subjacente à decisão da Ucrânia de fazer eco dos aliados ocidentais, dos quais dependemos para a nossa sobrevivência, consideramos que o atual apoio a Israel e a rejeição do direito dos palestinianos à autodeterminação são contraditórios com o próprio compromisso da Ucrânia para com os direitos humanos e a luta pela nossa terra e liberdade. Nós, ucranianos, devemos ser solidários não com os opressores, mas com aqueles que vivem e resistem à opressão.
Opomo-nos veementemente à equiparação da ajuda militar ocidental à Ucrânia e a Israel por parte de alguns políticos. A Ucrânia não ocupa os territórios de outros povos; em vez disso, luta contra a ocupação russa, pelo que a ajuda internacional serve uma causa justa e a proteção do direito internacional. Israel ocupou e anexou territórios palestinianos e sírios, e a ajuda ocidental a este país corrobora uma ordem injusta e demonstra uma duplicidade de critérios em relação ao direito internacional.
Opomo-nos à nova vaga de islamofobia, como o assassínio brutal de uma criança palestino-americana de seis anos e a agressão à sua família em Illinois, nos EUA, e à equiparação de qualquer crítica a Israel a antissemitismo. Ao mesmo tempo, opomo-nos também a que se responsabilize todo o povo judeu de todo o mundo pela política do Estado de Israel e condenamos a violência antissemita, como o ataque de uma multidão a um avião no Daguestão, Rússia.
Rejeitamos igualmente o ressurgimento da retórica da "guerra contra o terrorismo", utilizada pelos EUA e pela UE para justificar crimes de guerra e violações do direito internacional que minaram o sistema de segurança internacional e causaram inúmeras mortes, e que foi utilizada por outros Estados, incluindo o da Rússia para a guerra na Chechénia e o da China para o genocídio dos uigures. Agora, Israel está a utilizá-la para levar a cabo uma limpeza étnica.
Apelo à ação
Exortamos à implementação do apelo a um cessar-fogo, proposto pela resolução da Assembleia Geral da ONU.
Apelamos ao governo israelita para que ponha imediatamente termo aos ataques contra civis e forneça ajuda humanitária; insistimos no levantamento imediato e indefinido do cerco a Gaza e numa operação de socorro urgente para restaurar as infra-estruturas civis. Exortamos igualmente o Governo israelita a pôr termo à ocupação e a reconhecer o direito dos deslocados palestinianos a regressarem às suas terras.
Exortamos o Governo ucraniano a condenar o recurso ao terror sancionado pelo Estado e o bloqueio humanitário contra a população civil de Gaza, e a reafirmar o direito do povo palestiniano à autodeterminação. Exortamos igualmente o Governo ucraniano a condenar os ataques deliberados contra os palestinianos na Cisjordânia ocupada.
Apelamos aos meios de comunicação social internacionais para que deixem de colocar palestinianos e ucranianos uns contra os outros, onde as hierarquias do sofrimento perpetuam a retórica racista e desumanizam aqueles que estão a ser atacados.
Lista dos primeiros 50 signatários (ver lista atualizada):
Volodymyr Artiukh, investigador
Levon Azizian, advogado especializado em direitos humanos
Diana Azzuz, artista, músicA
Taras Bilous, editor
Oksana Briukhovetska, artista, investigadora, Universidade de Michigan
Artem Chapeye, escritor
Valentyn Dolhochub, investigador, soldado
Nataliya Gumenyuk, jornalista
John-Paul Himka, professor emérito, Universidade de Alberta
Karina Al Khmuz, engenheira biomédica programadora
Yuliia Kishchuk, investigadora
Amina Ktefan, influencier de moda, criadora digital
Svitlana Matviyenko, académica em comunicação social, SFU, Directora Associada do Digital Democracies Institute
Maria Mayerchyk, académica
Vitalii Pavliuk, escritor, tradutor
Sashko Protyah, cineasta, voluntário
Oleksiy Radynski, cineasta
Mykola Ridnyi, artista e cineasta
Daria Saburova, investigadora, ativista
Alexander Skyba, ativista laboral
Darya Tsymbalyuk, investigadora
Nelia Vakhovska, tradutora
Yuliya Yurchenko, investigadora, tradutora, ativista
Iryna Zamuruieva, investigadora ecofeminista, artista, gestora de projectos de política climática e fundiária
Alisha Andani, estudante de História da Arte
Daša Anosova, curadora, investigadora, UCL SSEES
Lilya Badekha, ativista, culturologista, gestora das redes sociais da revista Spilne
Anastasia Bobrova, investigadora
Anastasiia Bobrovska, DJ, ativista, consultora de estratégia digital
Mariana Bodnaruk, investigadora
Yuriy Boyko, investigador, assistente científico
Vladislava Chepurko
Daria Demia, artista
Olena Dmytryk, investigadora
Olha Dobrovolska, professora, investigadora cultural
Svitlana Dolbysheva, artista, cineasta
Hanna Dosenko, antropóloga
Vitalii Dudin, ativista da ONG Sotsialnyi Rukh
Oksana Dutchak, socióloga
Nastya Dzyuban, coreógrafa e performer
Kateryna Farbar, jornalista
Taras Gembik, trabalhador da cultura, co-organizador do SDK Slonecznik no Museu de Arte Moderna de Varsóvia
Anna Greszta, investigadora, co-fundadora da Collect4Ukraine
Olenka Gu, socióloga
Tetiana Hanzha, realizadora de documentários
Andrii Hulianytskyi, investigador
Serhii Ishchenko, jornalista
Hanna Karpishena
Milena Khomchenko, curadora e escritora, editora-chefe do SONIAKH digest
Daria Khrystych, investigadora, ativista
* Carta aberta publicada no portal ucraniano Commons »»» https://commons.com.ua/en/ukrayinskij-list-solidarnosti/
Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.
13 de Novembro, 2023