12.2.22

CINE TEATRO DE NISA – 90 ANOS (1931-2021) : A demonstração do bairrismo nisense

Inaugurado há 90 anos, nos dias 9 e 10 de Outubro de 1931 (Feira de S. Miguel), o Cine Teatro de Nisa representou a concretização de um sonho colectivo e a demonstração do maior amor à sua terra, a que deram forma vários nisenses, através da então constituída Empresa do Teatro Nisense.
Entre tantos que disponibilizaram dinheiro e boa vontade, dois homens temos, forçosamente, de destacar: Manuel Granchinho e José Vieira Esteves da Fonseca. Um e outro pela generosidade das suas contribuições monetárias e empenhamento pessoal, o último, também, como gestor da obra no terreno e, posteriormente, como administrador da empresa.
Do que representou e continua a representar para Nisa, esta sala de espectáculos, hoje em dia uma das melhores do distrito por força da grande transformação e recuperação que sofreu nos anos 80 e 90 e que lhe travaram o estado de ruína e a progressiva degradação, obra realizada pela Câmara Municipal de Nisa, atestam-no, quer o gosto dos nisenses desde épocas remotas pelo teatro e as representações cénicas, quer a própria frequência aos espectáculos cinematográficos, desde os anos 30 do século passado.
Neste trabalho evocativo dos 90 anos da construção do novo teatro pretendemos assinalar a data, lembrar os obreiros desta grande obra, feita e mantida por particulares, a “sociedade civil” da época e abrir as portas e janelas para uma reflexão sobre o que pode a força criadora dos homens, quando animada e orientada num sentido mais nobre, nesta caso, a construção de um equipamento cultural que, mesmo na sua inauguração, foi considerado um dos melhores e mais espaçosos na época, a nível do interior.
Este sentimento nobre, este despontar de um forte bairrismo, alicerçado no amor à terra e à cultura, fez nascer, outra vez, o nosso Teatro. E, lembramos, uma vez mais, que em Nisa, desde o século XVIII, o teatro sempre fez parte das manifestações artísticas dos nisenses.
O nascimento de um sonho
Os dados que seguem foram retirados do Relatório e Contas (Exercício de 1930/1946) da Empresa do Teatro Nisense Lda, livros que foram criteriosamente elaborados por José Vieira da Fonseca.
“ Em fins do ano de 1929, teve-se conhecimento em Nisa que ia ser arrematado em hasta pública, no tribunal desta comarca o velho Teatro Nisense (1), cuja reconstrução em 1918-1919 ficara em meio.
Vindo a Nisa por essa ocasião Manuel Granchinho e encontrando-se com José Vieira da Fonseca, acordam em fundar uma sociedade com o fim de arrematar a construção do dito Teatro.”
Manuel Granchinho não residia em Nisa e foi necessário convidar outras pessoas para a direcção da futura sociedade, passando esta a integrar José Augusto Fraústo Basso e António Paralta.
Em 8 de Fevereiro de 1930 é constituída uma sociedade por quotas, designada Empresa do Teatro Nisense Lda, formada por 13 societários e com o capital inicial de 75 mil escudos (75 contos), não podendo a quota de cada sócio ser inferior a 5 contos.
O objectivo era arrematar o antigo Teatro Nisense e acabar a sua construção, ou então construir outro em local mais apropriado.
Assinaram, como societários, a escritura: José Augusto Fraústo Basso, António da Graça Paralta, José Vieira Esteves da Fonseca, Manuel Granchinho, Augusto Dinis Vieira, Alfredo Dinis Vieira, Carlos Bento Pestana, António Caldeira Tonilhas, Aníbal da Graça Vieira, João Emílio Figueiredo, Joaquim Tavares Machado, Albano Curado Biscaia e José da Cruz Nunes. Entraram Manuel Granchinho e José Vieira da Fonseca com a quota de 10 mil escudos, os restantes com 5 mil escudos, cada um, tendo sido nomeados directores e gerentes da empresa, os três primeiros.
Passados 5 dias foi o velho Teatro à praça com o preço de 14 mil escudos e em lances sucessivos – pois apareceu outro concorrente – elevou-se à quantia de 30 mil escudos.
Nesta altura a direcção da empresa abandonou a praça e o Teatro foi adjudicado ao outro concorrente.
Perante este percalço, a direcção pensou na construção, de raiz, no Rossio. Manuel Granchinho desde logo apoiou a ideia e deu a garantia de contribuir até 100 mil escudos para a edificação do teatro. José Vieira da Fonseca e Augusto Dinis Vieira duplicaram o valor da sua quota, procuraram-se mais sócios e passados alguns dias, em reunião de societários era apresentado o croquis da planta do novo teatro, com as ideias mais gerais.
Obra por administração directa
A planta depois de corrigida pela Inspecção-Geral dos Espectáculos veio aprovada em fins de Março.
Daqui em diante seguiu-se um autêntico corrupio. António Paralta e José Vieira da Fonseca contactaram o empreiteiro Joaquim Barbudo (Castelo Branco) e receberam outras propostas, deliberando fazer a construção por administração directa e encarregando dos trabalhos o mestre d´obras António Farto, de Vale do Peso.
No terreno onde existira o antigo cemitério, começaram a surgir os caboucos e da área arrematada utilizaram-se 640 m2 para o edifício, sendo 16 metros de fachada principal e 40 metros de comprimento, ficando a pertencer à empresa, uma faixa de terreno de 2 metros de largura do lado norte e do lado sul outra de 7 metros e m toda a extensão do edifício.
O sonho da construção de um novo Teatro estava em marcha, imparável e a inauguração nos dias 9 e 10 de Outubro de 1931 foi um dos grandes acontecimentos da história de Nisa do século passado.
A inauguração solene, na véspera da Feira de S. Miguel, esteve a cargo da Companhia do Teatro Nacional Almeida Garret, de que faziam parte além dos seu directores Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, a actriz Palmira Bastos e o autor António Pinheiro.
Num dos intervalos do espectáculo, foi descerrada pela actriz Palmira Bastos, uma lápide de mármore a assinalar a inauguração no salão do Teatro.
O cinema mudo só foi inaugurado a 3 de Novembro, devido a problemas com a instalação eléctrica. Em 18 de Janeiro de 1935 inaugurou-se o cinema sonoro, com o sistema Klangfilm-Tobis, tendo importado a sua compra e instalação em cerca de 20 mil escudos, verba que foi obtida por subscrição.
A actividade do Cine Teatro de Nisa manteve-se, ininterruptamente até finais dos anos 70, com sessões de cinema aos sábados, domingos e feriados, espectáculos teatrais, musicais e de revista, representações cénicas com actores locais, sessões de propaganda, enfim, tudo o que o espaço cénico comportava.
Degradação, abandono, ruína e reabilitação
Depois as condições do edifício foram-se, progressivamente, deteriorando-se. A execução de obras e a remodelação da sala de espectáculos condizente com as novas realidade e condições de conforto e segurança foram sendo adiadas, ainda mais por que a maioria dos societários tinham falecido ou estavam ausentes de Nisa há longos anos.
Havia dúvidas quanto à titularidade do Cine Teatro, que entretanto, passara, para a propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Nisa.
Este aspecto viria a condicionar o arranque de obras para a reabilitação do edifício, que antes que a ruína lhe abreviasse o fim e lhe sucedesse o mesmo que ao antigo teatro, em 1916.
A Câmara de Nisa, presidida por José Manuel Basso tomou a decisão de avançar com as obras de recuperação e reabilitação do Cine Teatro. Foram negociações difíceis e complexas com a Misericórdia de Nisa, mas por fim sobressaiu o bom senso e as obras avançaram e com alguns percalços pelo caminho foram concluídas no final de 1996.
Custaram cerca de 175 mil contos, tendo em conta algumas obras de beneficiação que a autarquia executou no âmbito do protocolo com a Santa Casa.
Em Outubro de 1997, com o filme “O Vulcão” que teve estreia nacional em Lisboa, Porto e Nisa, o Cine Teatro era reinaugurado e reabilitada com honra e festa, a memória de Manuel Granchinho e de José Vieira da Fonseca, principais dinamizadores de um equipamento cultural que enobrece Nisa,
Nisa tem um Cine Teatro que é dos melhores do distrito, mas a que falta emprestar, a graciosidade, o saber e o dinamismo dos autores e actores locais, entre estes, em primeira instância, a própria Câmara Municipal.
É preciso recuperar o “espírito bairrista” que animou esta gesta de homens, eu deram asas ao sonho e promoveram, por si próprios, um dos mais arrojados empreendimentos da nossa vila.
(1) Edifício que foi sede do Clube Nisense, Biblioteca Municipal e actualmente da Inijovem.
Duas referências do Teatro português em Nisa
Uma das mais importantes figuras do Teatro Português, Palmira Bastos (1875-1967), que integrou a Companhia de Robles Monteiro/Amélia Rey Colaço e que esteve presente em Nisa na inauguração do nosso Cine Teatro, em 9 e 10 de Outubro de 1931. A imagem é uma reprodução de um bilhete-postal ilustrado, que era utilizado na época como meio de promover e divulgar as diferentes peças de Teatro.
Passados que são 90 anos da inauguração do Cine Teatro de Nisa, aqui deixamos registada uma imagem de Robles Monteiro e Amélia Rey Colaço, dois pilares fundamentais da mais importante Companhia de Teatro que existiu no nosso país no século XX. Companhia que existiu entre 1921 e 1974.
Recordamos, também, que foi esta Companhia que inaugurou o Crisfal, em Portalegre em 1956, que 50 anos depois encerra ingloriamente para passar a ser uma Discoteca e outros afins, lúdicos. Amélia Rey Colaço despediu-se do Teatro precisamente no nosso distrito, em Portalegre, nos anos 80, na peça "El Rei Sebastião" de José Régio, no Crisfal. As actuações que estavam previstas para Lisboa, já não se realizaram por motivos de doença, devido provavelmente à idade avançada da actriz.
A última aparição de Amélia Rey Colaço na televisão foi num programa de humor, na RTP, chamado "Gente Fina é outra coisa" com Nicolau Breyner, entre outros.
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO NO VELHO TEATRO (1901)
“ No ano de 1901, alguns rapazes de Nisa, entusiastas da música e tocadores de instrumentos de corda, organizaram um grupo musical a que deram o nome de”Troupe dos Bandolinistas de Nisa”.
Eram ensaiados pelo mestre da banda local, Gabriel Maria Batalha, natural de Portalegre.
Depois de bastantes ensaios, prepararam-se para dar um concerto no velho e arruinado teatro, que já há muito tempo estava inteiramente entregue ao domínio dos ratos.
Os organizadores do grupo e alguns amigos dispuseram-se a arrumar a casa de espectáculos, para a pôr em condições de servir.
Fizeram-se vários arranjos, tanto na sala como no palco.
No lustre, que era de vidrilhos, muito vistoso, foram retiradas as candeias para azeite (que costumavam pingar sobre os espectadores da plateia) e substituídas por bobeches de folha, para velas.
O pano de boca, já esfarrapado, com grandes nódoas da água da chuva que entrava pelo telhado, foi devidamente corrigido.
Em fins do mesmo ano, tanto a Troupe como o teatro estavam em condições para se realizar o espectáculo.
Para este não constar só de música procurou a direcção da Troupe um grupo cénico, para colaborar numa das partes da sessão artística.
Não o conseguiram em Nisa.
Fernando Matutino, que estava nessa ocasião a prestar serviço numa repartição de Vila Velha de Ródão, conseguiu, que um grupo cénico daquela localidade viesse a Nisa representar uma comédia.
Realizou-se então o espectáculo no primeiro domingo a seguir ao Natal.
A casa estava cheia. Ao subir o pano, que rangiu nas roldanas, a cena apresentou-se do modo seguinte: à frente, Gabriel Batalha, de fraque, empunhando a batuta, diante da sua estante, igual à que tinham todos os executantes. A seguir, os primeiros bandolinistas: José Vieira da Fonseca e José da Cruz Filipe; depois, os segundos: José Dinis Figueiredo, José de Oliveira Ramos e Eduardo da Silva Porto. Finalmente, o flauta António Luís.
Num dos lados da cena, os violas: António Bastos e João Maria Leitão; no outro lado, Severino Dinis Porto e Francisco Tello Gonçalves, estudante universitário, que se encontrava em férias e quis abrilhantar o espectáculo.
Todos os executantes foram muito aplaudidos, porque realmente, o conjunto era bom e estava bem ensaiado.
Muitas das peças executadas eram da Tuna Académica de Lisboa, à qual pertencera um dos elementos da Troupe.
A segunda parte do espectáculo foi feita pelos amadores de Vila Velha de Ródão que representaram a comédia “O Actor e os seus Vizinhos”.
Finda a comédia, apareceram no palco: o professor José da Cruz Sambado que cantou a cançoneta “Tudo Cresce” (metendo trechos da sua autoria) em que foi muito aplaudido; o comerciante Francisco Santos, que disse um monólogo, e Fernando Matutino que recitou a poesia “Fel”, de Guerra Junqueiro.
Seguiu-se a terceira parte, que foi toda constituída por obras musicais.
Acabado o espectáculo, houve grande ceia no salão da estalagem da Tia Ana Curado, oferecida aos amadores de Vila Velha, a qual decorreu muito animada, tendo discursado o estudante Francisco Tello Gonçalves, muito aplaudido no final.
Na rua, à porta da estalagem, estacionavam dois carros da empresa M. Barreto (Ti Pouquito) que conduziram o grupo dos actores à sua terra.
Quanto ao Teatro, ainda se conservou por muito tempo, quase no mesmo estado, até que, em 11 de Junho de 1916, se deu a derrocada.”
Nizorro in “Correio de Nisa” – 6/3/1965
Uma sala de referência, sem actividade cultural!
O Cine Teatro de Nisa neste fim de semana (9 e 10 de Outubro de 2021) completou 90 anos de existência. A Câmara, proprietária do imóvel e que tanto dinheiro gasta em flores e adereços, não se dignou ter um rasgo de "audácia" e criatividade para assinalar a efeméride. O Cine Teatro de Nisa, considerado "sala de referência" tem estado praticamente fechado desde o início da pandemia, primeiro com as "desculpas" do cumprimento da lei e das normas sanitárias; depois sem qualquer justificação. No meio, funcionou, com a "bênção" das entidades de saúde como "espaço de vacinação" e montra de iniciativas camarárias. Agora, abre a espaços, quando dá jeito à maioria socialista e no restante tempo do calendário permanece como uma sala fantasma, sem qualquer préstimo, sem funcionar para aquilo que foi criada: a realização de actividades culturais, desde o cinema ao teatro e outras manifestações lúdicas.
Não se compreende esta atitude do executivo que tanto fala em trabalhar para as pessoas.
Não merecerão estas o acesso à cultura? A espectáculos de cinema, teatro, música e outros? Ou apenas serão merecedoras da atenção municipal quando há eleições e é preciso garantir o voto e a manutenção do poleiro?
Nisa tem uma sala de espectáculos que devia ser uma referência, mas não, como acontece, pela negativa. Promovam espectáculos, actividades artísticas e culturais. Dêem vida à "sala do Norte Alentejano" e, por favor, encarecidamente vos peço, não se desculpem com as cegonhas, ou com os executivos de mil novecentos e carqueja.
Valeu?
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 20/10/2021