Inaugurado há 90 anos, nos dias
9 e 10 de Outubro de 1931 (Feira de S. Miguel), o Cine Teatro de Nisa
representou a concretização de um sonho colectivo e a demonstração
do maior amor à sua terra, a que deram forma vários nisenses,
através da então constituída Empresa do Teatro Nisense.
Entre tantos que disponibilizaram
dinheiro e boa vontade, dois homens temos, forçosamente, de
destacar: Manuel Granchinho e José Vieira Esteves da Fonseca. Um e
outro pela generosidade das suas contribuições monetárias e
empenhamento pessoal, o último, também, como gestor da obra no
terreno e, posteriormente, como administrador da empresa.
Do que representou e continua a
representar para Nisa, esta sala de espectáculos, hoje em dia uma
das melhores do distrito por força da grande transformação e
recuperação que sofreu nos anos 80 e 90 e que lhe travaram o estado
de ruína e a progressiva degradação, obra realizada pela Câmara
Municipal de Nisa, atestam-no, quer o gosto dos nisenses desde épocas
remotas pelo teatro e as representações cénicas, quer a própria
frequência aos espectáculos cinematográficos, desde os anos 30 do
século passado.
Neste trabalho evocativo dos 90 anos da
construção do novo teatro pretendemos assinalar a data, lembrar os
obreiros desta grande obra, feita e mantida por particulares, a
“sociedade civil” da época e abrir as portas e janelas para uma
reflexão sobre o que pode a força criadora dos homens, quando
animada e orientada num sentido mais nobre, nesta caso, a construção
de um equipamento cultural que, mesmo na sua inauguração, foi
considerado um dos melhores e mais espaçosos na época, a nível do
interior.
Este sentimento nobre, este despontar
de um forte bairrismo, alicerçado no amor à terra e à cultura, fez
nascer, outra vez, o nosso Teatro. E, lembramos, uma vez mais, que em
Nisa, desde o século XVIII, o teatro sempre fez parte das
manifestações artísticas dos nisenses.
O nascimento de um sonho
Os dados que seguem foram retirados do
Relatório e Contas (Exercício de 1930/1946) da Empresa do Teatro
Nisense Lda, livros que foram criteriosamente elaborados por José
Vieira da Fonseca.
“ Em fins do ano de 1929, teve-se
conhecimento em Nisa que ia ser arrematado em hasta pública, no
tribunal desta comarca o velho Teatro Nisense (1),
cuja reconstrução em 1918-1919 ficara em meio.
Vindo a Nisa por essa ocasião Manuel
Granchinho e encontrando-se com José Vieira da Fonseca, acordam em
fundar uma sociedade com o fim de arrematar a construção do dito
Teatro.”
Manuel Granchinho não residia em Nisa
e foi necessário convidar outras pessoas para a direcção da futura
sociedade, passando esta a integrar José Augusto Fraústo Basso e
António Paralta.
Em 8 de Fevereiro de 1930 é
constituída uma sociedade por quotas, designada Empresa do Teatro
Nisense Lda, formada por 13 societários e com o capital inicial de
75 mil escudos (75 contos), não podendo a quota de cada sócio ser
inferior a 5 contos.
O objectivo era arrematar o antigo
Teatro Nisense e acabar a sua construção, ou então construir outro
em local mais apropriado.
Assinaram, como societários, a
escritura: José Augusto Fraústo Basso, António da Graça Paralta,
José Vieira Esteves da Fonseca, Manuel Granchinho, Augusto Dinis
Vieira, Alfredo Dinis Vieira, Carlos Bento Pestana, António Caldeira
Tonilhas, Aníbal da Graça Vieira, João Emílio Figueiredo, Joaquim
Tavares Machado, Albano Curado Biscaia e José da Cruz Nunes.
Entraram Manuel Granchinho e José Vieira da Fonseca com a quota de
10 mil escudos, os restantes com 5 mil escudos, cada um, tendo sido
nomeados directores e gerentes da empresa, os três primeiros.
Passados 5 dias foi o velho Teatro à
praça com o preço de 14 mil escudos e em lances sucessivos – pois
apareceu outro concorrente – elevou-se à quantia de 30 mil
escudos.
Nesta altura a direcção da empresa
abandonou a praça e o Teatro foi adjudicado ao outro concorrente.
Perante este percalço, a direcção
pensou na construção, de raiz, no Rossio. Manuel Granchinho desde
logo apoiou a ideia e deu a garantia de contribuir até 100 mil
escudos para a edificação do teatro. José Vieira da Fonseca e
Augusto Dinis Vieira duplicaram o valor da sua quota, procuraram-se
mais sócios e passados alguns dias, em reunião de societários era
apresentado o croquis da planta do novo teatro, com as ideias mais
gerais.
Obra por administração directa
A planta depois de corrigida pela
Inspecção-Geral dos Espectáculos veio aprovada em fins de Março.
Daqui em diante seguiu-se um autêntico
corrupio. António Paralta e José Vieira da Fonseca contactaram o
empreiteiro Joaquim Barbudo (Castelo Branco) e receberam outras
propostas, deliberando fazer a construção por administração
directa e encarregando dos trabalhos o mestre d´obras António
Farto, de Vale do Peso.
No terreno onde existira o antigo
cemitério, começaram a surgir os caboucos e da área arrematada
utilizaram-se 640 m2 para o edifício, sendo 16 metros de fachada
principal e 40 metros de comprimento, ficando a pertencer à empresa,
uma faixa de terreno de 2 metros de largura do lado norte e do lado
sul outra de 7 metros e m toda a extensão do edifício.
O sonho da construção de um novo
Teatro estava em marcha, imparável e a inauguração nos dias 9 e 10
de Outubro de 1931 foi um dos grandes acontecimentos da história de
Nisa do século passado.
A inauguração solene, na véspera da
Feira de S. Miguel, esteve a cargo da Companhia do Teatro Nacional
Almeida Garret, de que faziam parte além dos seu directores Amélia
Rey Colaço e Robles Monteiro, a actriz Palmira Bastos e o autor
António Pinheiro.
Num dos intervalos do espectáculo, foi
descerrada pela actriz Palmira Bastos, uma lápide de mármore a
assinalar a inauguração no salão do Teatro.
O cinema mudo só foi inaugurado a 3 de
Novembro, devido a problemas com a instalação eléctrica. Em 18 de
Janeiro de 1935 inaugurou-se o cinema sonoro, com o sistema
Klangfilm-Tobis, tendo importado a sua compra e instalação em cerca
de 20 mil escudos, verba que foi obtida por subscrição.
A actividade do Cine Teatro de Nisa
manteve-se, ininterruptamente até finais dos anos 70, com sessões
de cinema aos sábados, domingos e feriados, espectáculos teatrais,
musicais e de revista, representações cénicas com actores locais,
sessões de propaganda, enfim, tudo o que o espaço cénico
comportava.
Degradação, abandono, ruína e
reabilitação
Depois as condições do edifício
foram-se, progressivamente, deteriorando-se. A execução de obras e
a remodelação da sala de espectáculos condizente com as novas
realidade e condições de conforto e segurança foram sendo adiadas,
ainda mais por que a maioria dos societários tinham falecido ou
estavam ausentes de Nisa há longos anos.
Havia dúvidas quanto à titularidade
do Cine Teatro, que entretanto, passara, para a propriedade da Santa
Casa da Misericórdia de Nisa.
Este aspecto viria a condicionar o
arranque de obras para a reabilitação do edifício, que antes que a
ruína lhe abreviasse o fim e lhe sucedesse o mesmo que ao antigo
teatro, em 1916.
A Câmara de Nisa, presidida por José
Manuel Basso tomou a decisão de avançar com as obras de recuperação
e reabilitação do Cine Teatro. Foram negociações difíceis e
complexas com a Misericórdia de Nisa, mas por fim sobressaiu o bom
senso e as obras avançaram e com alguns percalços pelo caminho
foram concluídas no final de 1996.
Custaram cerca de 175 mil contos, tendo
em conta algumas obras de beneficiação que a autarquia executou no
âmbito do protocolo com a Santa Casa.
Em Outubro de 1997, com o filme “O
Vulcão” que teve estreia nacional em Lisboa, Porto e Nisa, o Cine
Teatro era reinaugurado e reabilitada com honra e festa, a memória
de Manuel Granchinho e de José Vieira da Fonseca, principais
dinamizadores de um equipamento cultural que enobrece Nisa,
Nisa tem um Cine Teatro que é dos
melhores do distrito, mas a que falta emprestar, a graciosidade, o
saber e o dinamismo dos autores e actores locais, entre estes, em
primeira instância, a própria Câmara Municipal.
É preciso recuperar o “espírito
bairrista” que animou esta gesta de homens, eu deram asas ao sonho
e promoveram, por si próprios, um dos mais arrojados empreendimentos
da nossa vila.
(1) – Edifício que foi sede do Clube Nisense,
Biblioteca Municipal e actualmente da Inijovem.
Duas referências do
Teatro português em Nisa
Uma das mais importantes figuras do
Teatro Português, Palmira Bastos (1875-1967), que integrou a
Companhia de Robles Monteiro/Amélia Rey Colaço e que esteve
presente em Nisa na inauguração do nosso Cine Teatro, em 9 e 10 de
Outubro de 1931. A imagem é uma reprodução de um bilhete-postal
ilustrado, que era utilizado na época como meio de promover e
divulgar as diferentes peças de Teatro.
Passados que são 90 anos da
inauguração do Cine Teatro de Nisa, aqui deixamos registada uma
imagem de Robles Monteiro e Amélia Rey Colaço, dois pilares
fundamentais da mais importante Companhia de Teatro que existiu no
nosso país no século XX. Companhia que existiu entre 1921 e 1974.
Recordamos, também, que foi esta
Companhia que inaugurou o Crisfal, em Portalegre em 1956, que 50 anos
depois encerra ingloriamente para passar a ser uma Discoteca e outros
afins, lúdicos. Amélia Rey Colaço despediu-se do Teatro
precisamente no nosso distrito, em Portalegre, nos anos 80, na peça
"El Rei Sebastião" de José Régio, no Crisfal. As
actuações que estavam previstas para Lisboa, já não se realizaram
por motivos de doença, devido provavelmente à idade avançada da
actriz.
A última aparição de Amélia Rey
Colaço na televisão foi num programa de humor, na RTP, chamado
"Gente Fina é outra coisa" com Nicolau Breyner, entre
outros.
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
NO VELHO TEATRO (1901)
“ No ano de 1901, alguns rapazes de
Nisa, entusiastas da música e tocadores de instrumentos de corda,
organizaram um grupo musical a que deram o nome de”Troupe dos
Bandolinistas de Nisa”.
Eram ensaiados pelo mestre da banda
local, Gabriel Maria Batalha, natural de Portalegre.
Depois de bastantes ensaios,
prepararam-se para dar um concerto no velho e arruinado teatro, que
já há muito tempo estava inteiramente entregue ao domínio dos
ratos.
Os organizadores do grupo e alguns
amigos dispuseram-se a arrumar a casa de espectáculos, para a pôr
em condições de servir.
Fizeram-se vários arranjos, tanto na
sala como no palco.
No lustre, que era de vidrilhos, muito
vistoso, foram retiradas as candeias para azeite (que costumavam
pingar sobre os espectadores da plateia) e substituídas por bobeches
de folha, para velas.
O pano de boca, já esfarrapado, com
grandes nódoas da água da chuva que entrava pelo telhado, foi
devidamente corrigido.
Em fins do mesmo ano, tanto a Troupe
como o teatro estavam em condições para se realizar o espectáculo.
Para este não constar só de música
procurou a direcção da Troupe um grupo cénico, para colaborar numa
das partes da sessão artística.
Não o conseguiram em Nisa.
Fernando Matutino, que estava nessa
ocasião a prestar serviço numa repartição de Vila Velha de Ródão,
conseguiu, que um grupo cénico daquela localidade viesse a Nisa
representar uma comédia.
Realizou-se então o espectáculo no
primeiro domingo a seguir ao Natal.
A casa estava cheia. Ao subir o pano,
que rangiu nas roldanas, a cena apresentou-se do modo seguinte: à
frente, Gabriel Batalha, de fraque, empunhando a batuta, diante da
sua estante, igual à que tinham todos os executantes. A seguir, os
primeiros bandolinistas: José Vieira da Fonseca e José da Cruz
Filipe; depois, os segundos: José Dinis Figueiredo, José de
Oliveira Ramos e Eduardo da Silva Porto. Finalmente, o flauta António
Luís.
Num dos lados da cena, os violas:
António Bastos e João Maria Leitão; no outro lado, Severino Dinis
Porto e Francisco Tello Gonçalves, estudante universitário, que se
encontrava em férias e quis abrilhantar o espectáculo.
Todos os executantes foram muito
aplaudidos, porque realmente, o conjunto era bom e estava bem
ensaiado.
Muitas das peças executadas eram da
Tuna Académica de Lisboa, à qual pertencera um dos elementos da
Troupe.
A segunda parte do espectáculo foi
feita pelos amadores de Vila Velha de Ródão que representaram a
comédia “O Actor e os seus Vizinhos”.
Finda a comédia, apareceram no palco:
o professor José da Cruz Sambado que cantou a cançoneta “Tudo
Cresce” (metendo trechos da sua autoria) em que foi muito
aplaudido; o comerciante Francisco Santos, que disse um monólogo, e
Fernando Matutino que recitou a poesia “Fel”, de Guerra
Junqueiro.
Seguiu-se a terceira parte, que foi
toda constituída por obras musicais.
Acabado o espectáculo, houve grande
ceia no salão da estalagem da Tia Ana Curado, oferecida aos amadores
de Vila Velha, a qual decorreu muito animada, tendo discursado o
estudante Francisco Tello Gonçalves, muito aplaudido no final.
Na rua, à porta da estalagem,
estacionavam dois carros da empresa M. Barreto (Ti Pouquito) que
conduziram o grupo dos actores à sua terra.
Quanto ao Teatro, ainda se conservou
por muito tempo, quase no mesmo estado, até que, em 11 de Junho de
1916, se deu a derrocada.”
Nizorro in “Correio
de Nisa” – 6/3/1965
Uma
sala de referência, sem actividade cultural!
O Cine Teatro de Nisa neste fim de
semana (9 e 10 de Outubro de 2021) completou 90 anos de existência.
A Câmara, proprietária do imóvel e que tanto dinheiro gasta em
flores e adereços, não se dignou ter um rasgo de "audácia"
e criatividade para assinalar a efeméride. O Cine Teatro de Nisa,
considerado "sala de referência" tem estado praticamente
fechado desde o início da pandemia, primeiro com as "desculpas"
do cumprimento da lei e das normas sanitárias; depois sem qualquer
justificação. No meio, funcionou, com a "bênção" das
entidades de saúde como "espaço de vacinação" e montra
de iniciativas camarárias. Agora, abre a espaços, quando dá jeito
à maioria socialista e no restante tempo do calendário permanece
como uma sala fantasma, sem qualquer préstimo, sem funcionar para
aquilo que foi criada: a realização de actividades culturais, desde
o cinema ao teatro e outras manifestações lúdicas.
Não se compreende esta atitude do
executivo que tanto fala em trabalhar para as pessoas.
Não merecerão estas o acesso à
cultura? A espectáculos de cinema, teatro, música e outros? Ou
apenas serão merecedoras da atenção municipal quando há eleições
e é preciso garantir o voto e a manutenção do poleiro?
Nisa tem uma sala de espectáculos que
devia ser uma referência, mas não, como acontece, pela negativa.
Promovam espectáculos, actividades artísticas e culturais. Dêem
vida à "sala do Norte Alentejano" e, por favor,
encarecidamente vos peço, não se desculpem com as cegonhas, ou com
os executivos de mil novecentos e carqueja.
Valeu?
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 20/10/2021