Nas eleições legislativas de 30 de Janeiro, o medo de ter ainda menos superou a vontade de ter um pouco mais. Neste país de baixos salários e pensões, em que a pobreza aumenta e a pandemia atormenta, está bem viva a memória dos anos da Troika e da governação da direita coligada. Anos a fio, acordar e informar-se era ficar a saber de mais um corte nos rendimentos, era perder o emprego ou dias de férias e feriados, era emigrar para não desistir. Esses anos não são apenas uma lembrança: são um trauma revivido em tudo o que se perdeu e não voltou a ser como era (rendimentos, poder de compra, contratos de trabalho, relações familiares). A pandemia só veio acrescentar mais dificuldades, riscos e cansaços. Elevou a fasquia do medo, tornando mais presente a doença e a morte, e fê-lo crescer entre pessoas mais isoladas, mais limitadas na socialização e na informação.
Foi neste terreno fértil que se construiu o medo da vitória eleitoral da direita e da extrema-direita. Durante três meses, o espaço público e mediático foi palco da repetição das mesmas ideias, com algumas variantes. Desejando remeter para um parêntesis da história a solução governamental apoiada à esquerda, a narrativa dominante desvalorizou o que ela melhorou nas vidas concretas de muitas pessoas e silenciou o papel específico de cada partido nessas melhorias. Aos partidos políticos à esquerda do Partido Socialista (PS) atribuiu-se o papel de dispensáveis, de modo a retirar do campo dos possíveis as propostas — bem moderadas, convenhamos — que eles não desistiam de fazer. Se tais propostas não haviam sido acolhidas pelo governo em sede de Orçamento do Estado para 2022, mais ainda desagradavam às forças políticas e económicas da direita neoliberal e ultraliberal (aumento de salários e pensões, legislação laboral, tributação dos mais altos rendimentos, investimento público e em particular nos Serviço Nacional de Saúde, etc.).
António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), ilustra bem as pressões exercidas neste sentido. Em 22 de Outubro de 2021, ainda se discutia a proposta de Orçamento, o patrão dos patrões fez questão de mostrar a António Costa — que acabou a pedir desculpas «por uma falha processual» — que o governo não podia aprovar alterações à lei laboral (aumento das compensações por cessação dos contratos a termo, aumento do valor pago por horas extraordinárias…) não contempladas na agenda apresentada à Concertação Social. O presidente da República logo se apressou a receber esta estrutura, mostrando o quanto ela serve de contrapeso ao que possa ser decidido à esquerda no Parlamento. Mais recentemente, António Saraiva, no auge da «disputa acesa» que marca «uma das três eleições mais renhidas do século» (dizia a manchete do Público de 27 de Janeiro), veio aproveitar o balanço de o próximo governo vir a ser mais à direita, para defender, nessa mesma edição, que «“É possível e desejável diminuir” o número de funcionários públicos» (título da entrevista). A seu ver, o próximo governo deveria ter a coragem de o fazer e o presidente da República deveria exigir um acordo aos dois maiores partidos para essas e outras reformas.
Entre um momento e outro, a narrativa mil vezes repetida por jornalistas, comentadores e entrevistados não fugiu ao guião destinado a garantir um governo tão à direita quanto fosse possível: responsabilização das esquerdas, vitimização pelas eleições, pedidos de maiorias estáveis ou absolutas, incentivos ao bloco central, governo com quaisquer direitas. Foi assim que sondagens e a esmagadora maioria da comunicação social foram construindo uma imagem de crescimento da direita, à beira da vitória do Partido Social Democrata, assente numa suposta «vontade de mudança».
A 28 de Janeiro, a manchete do Expresso assegurava estar «tudo empatado», haver um «empate técnico até ao fim», que o «Presidente quer solução ao centro» ou que «Rio acredita que pode governar com liberais». Na capa do Público, a fotografia onde se viam António Costa e Rui Rio mostrava os números da última sondagem: o PS vencia com 36%, o PSD estava agora com 32%. Só que, apesar dos números, o que de imediato se via era que Rio ocupava a dianteira da fotografia e Costa fora posto atrás dele. Apesar do sentido da manchete («Tudo em aberto»), a imagem visual prevalecia — e o texto mais pequeno agigantava o medo nos eleitores de esquerda: «Direita só terá maioria com Chega»… Nas televisões, os espaços noticiosos e de comentário seguiram exactamente o mesmo guião, influenciaram no mesmo sentido, criaram a realidade que quiseram. Fizeram debates com líderes partidários, o pluralismo a que foram obrigados, mas antes e depois destes (para não dizer durante), jornalistas, directores de informação e comentadores trataram de reenquadrar a pluralidade de perspectivas na narrativa conveniente.
Os resultados são conhecidos. A maioria absoluta do Partido Socialista só foi possível com os votos anti-austeridade que foi buscar à sua esquerda (Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português, muito penalizados) e à abstenção. A derrota do PSD deixou desolada grande parte do sistema mediático. Mesmo num cenário de grande aumento do número dos votantes, o Chega aumentou muito os deputados, o que é deveras preocupante, mas perdeu 111 214 votos em relação às presidenciais de Janeiro de 2021. Chega e Iniciativa Liberal juntos só tiveram mais 0,5% do que os 11,7% obtidos pelo CDS — Partido Popular nas legislativas de 2011.
O novo governo, que agora não precisa de dialogar e muito menos de negociar à sua esquerda, assumirá funções num quadro de radicalização das forças de direita (neoliberais e ultraliberais) e de menor peso parlamentar das forças à sua esquerda. É certo que estas últimas poderão beneficiar em breve, com o alívio da situação pandémica, de melhores condições de mobilização para lutas sindicais ou associativas. Sem isso, nada se conseguirá em termos maior justiça social. Mas, por outro lado, a nova conjuntura europeia e internacional não augura nada de bom. Apesar de declarações recentes de Christine Lagarde, o Banco Central Europeu (BCE) dificilmente deixará de aumentar as taxas de juro, a coberto da inflação, mesmo que não o faça nos moldes anunciados pela Reserva Federal norte-americana. E os juros da dívida portuguesa estão suspensos destas decisões do BCE, face a um governo de António Costa que já mostrou chamar «contas certas» aos desastrosos constrangimentos da União Europeia e do euro. Além disso, a direita acena com um festim (leia-se, «corrupção») na gestão dos «milhões da bazuca europeia», mas a verdade é que virá muito pouco dinheiro para as necessidades de recuperação do país.
Um país que já era dos mais desiguais da Europa e que é crescentemente desigual (5% dos portugueses concentram 42% da riqueza), onde o preço da habitação não pára de aumentar (comprar casa custa 50% mais do que há cinco anos) e onde os salários e as pensões continuam a perder poder de compra. Um país onde as classes médias até podem considerar que o mal maior são novos cortes austeritários mas onde cerca de 20% da população continua a viver na maior penúria e aflição. A 17 de Dezembro de 2021, o Instituto Nacional de Estatística (www.ine.pt) revelava que, no ano anterior, 18,4% da população estava em risco de pobreza (1,9 milhões de pessoas viviam com menos de 554 euros por mês, mais 228 mil do que em 2019), uma subida recorde e que inverte a melhoria verificada a partir de 2015. Mais afectadas são as mulheres, e entre estas as que têm mais de 65 anos. A taxa de risco de pobreza entre quem trabalha também aumentou, sendo agora de 11,2%, o valor mais elevado num década. E a taxa de pobreza e exclusão social atinge 22,4% da população, mais de 2,3 milhões de pessoas. Os segmentos mais desfavorecidos da população são uma parte imensa do povo português e o ano de 2022 começa com piores condições para resolver os seus problemas. As novas ameaças austeritárias serão, outra vez, desculpa para não acabar com estes ciclos de pobreza, privação e desigualdade. Mas o combate pelas condições de vidas destas classes populares vai ser também o combate pela democracia.
* Sandra Monteiro in "Le Monde Diplomatique" (edição portuguesa) - Fevereiro