Primeiro, Cristina Tavares foi despedida por extinção do seu posto de trabalho. Recorreu para tribunal e teve sentença favorável: a corticeira Fernando Couto Cortiças S.A. teve de indemnizá-la e reintegrá-la. E então Cristina Tavares foi obrigada a carregar e descarregar os mesmos sacos de 20 quilos para a mesma palete, ao sol, com constantes hemorragias nasais. A Autoridade para as Condições do Trabalho foi investigar e confirmou que nós, aqui na civilização, não toleramos este tipo de prática, e autuou a Fernando Couto Cortiças S.A. em 31 mil euros, julgando que a multa iria ter um efeito pedagógico. Mas agora a Fernando Couto Cortiças S.A. despediu novamente Cristina Tavares por calúnias.
Isto dos despedimentos é como o amor: a gente pode nunca esquecer o primeiro, mas ao longo da vida aparece outro que é o verdadeiramente marcante. O primeiro despedimento de Cristina Tavares foi muito engraçado, sobretudo por assentar numa alegação que o tribunal julgou aldrabona, mas este segundo parece-me ainda mais bem conseguido, na medida em que aponta como falsa uma acusação que um organismo do Estado já considerou verdadeira. Uma análise superficial do caso levar-nos-ia a concluir que a Fernando Couto Cortiças S.A tem dificuldade em distinguir o bem do mal, mas não é assim. Quando despede Cristina Tavares por considerar que as acusações que ela fez à entidade patronal são ofensivas, mostra ter consciência de que tratar um trabalhador daquela forma é repugnante. Essa consciência é muito saudável. Agora basta não tratar um trabalhador de forma repugnante, para não ser acusada de ser repugnante.
Não sei como funciona a cadeia de comando da Fernando Couto Cortiças S.A., mas há-de ter havido uma reunião em que se decidiu obrigar Cristina Tavares a carregar constantemente as mesmas sacas, e pelo menos um director teve de comunicar à funcionária que o seu trabalho passaria a ser esse. Para descobrir quem são essas pessoas, talvez as autoridades possam procurar, na Fernando Couto Cortiças S.A., quem tenha o corpo todo em carne viva, uma vez que, após praticar esse tipo de sujeira, imagino que uma pessoa chegue a casa com muita vontade de se esfregar toda com palha-de-aço. De qualquer modo, o caso acaba por ser uma excelente publicidade à Fernando Couto Cortiças S.A. e à indústria corticeira em geral: se uma empresa pode dar-se ao luxo de aplicar a força de trabalho de um funcionário em tarefas inúteis e desperdiçar dezenas de milhares de euros em multas e indemnizações, é porque o negócio vai de vento em popa.
Ricardo Araújo Pereira (Crónica publicada na VISÃO 1354 de 14/2/2019)