Em 1574 João de Torres foi condenado às galés por prática
continuada de contrabando em Montalvão. Alegando debilidade física conseguiu
convencer D. Sebastião, que então reinava, a alterar a pena para degredo para o
Brasil. Assim, juntamente com a sua mulher Angelina e os filhos, acabou por se
tornar o primeiro cigano a pisar terras de Sta, Cruz.
Nada mais se sabe acerca desta família de ciganos a não ser a
informação de que o seu clã seria o dos Calons, um dos cinco clãs porque se
distribuem os ciganos brasileiros.
A particularidade de ter conseguido a alteração da pena leva-nos
a tecer algumas conjecturas a propósito do contrabando que se praticava em
épocas mais recuadas e que, como veremos, era bem diferente do pequeno
contrabando de carrego de que todos nos lembramos ainda e que perdurou até meados
do século passado.
Convencer o rei a alterar a pena não era, seguramente, tarefa
fácil. O nosso João de Torres teve, com certeza, de despender uma avultada
maquia para convencer um conjunto de funcionários que, por sua vez, obtiveram a
assinatura do rei. Uma tal capacidade financeira não foi conseguida a
contrabandear pequenas quantidades de mercadorias carregadas em sacas. O seu negócio
tinha de ter uma dimensão em maior escala.
Vejamos o que nos diz J. Pimentel, um autor que estudou o
fenómeno no sec. XIX, escreveu ele na Revista Contemporanea de Portugal e
Brazil, de Abril de 1860: Quem não tem visto a grande facilidade com que entre
nós se faz o contrabando na raia de Hespanha? Só quem não tem visitado as
terras visinhas da fronteira. Não são os objectos de pouco volume e de muito
valor, como as rendas de França, e a orivesaria da Suissa que alli fazem o
objecto principal do contrabando. É tudo quanto se quizer, sem attenção a
volume, peso, ou valor; são os carros de trigo puchados lentamente pelos
pacíficos bois, são as manadas de cavallos e muares, é o assucar de Havana, a
agua-ardente de Zamora, o tabaco, as peças de lã e seda, é tudo quanto se
deseja, com tanto que na Hespanha exista.
A introdução de cada artigo tem já taxado o prémio que deve
pagar aos vigilantes pelo somno que elles devem dormir, ou pela distracção com
que se devem affastar do logar da introdução. Tudo se acha perfeitamente
regulado, e ensaiadas até as farças das tomadias extrategicas, que já não
enganam senão os imbecis.
A descrição que este
autor nos faz para uma época, em torno de 1856, pode ser aplicada a épocas
anteriores, nomeadamente à época de João de Torres. Estamos, pois, em presença
de um negócio em larga escala e apenas ao alcance de alguns que dispunham de
meios e influência bem maiores que o romântico contrabandista de pé descalço
que, quantas vezes, com risco da própria vida, se aventurava a atravessar,
vergado ao peso das sacas, a atravessar a vau o rio Sever.
Não obstante, esta grande diferença de meios e de volume de
mercadorias, a pequena história de João de Torres, ajuda-nos a perceber de quão
longe vem a tradição contrabandista das gentes de Montalvão e da Salavessa. Se,
em épocas mais remotas, o contrabando era um negócio atractivo e rentável,
constituindo uma opção de vida, com o andar dos séculos e o aumento da
repressão, esta actividade, acabaria por se tornar um recurso como forma de
colmatar a extrema pobreza daqueles que se viam obrigados a abraçá-la.
João de Torres é hoje uma figura desconhecida em Montalvão mas,
no Brasil tem direito a um prémio com o seu nome instituído pelo Ministério da
Cultura destinado a premiar acções relativas à comunidade cigana.
Este pequeno apontamento sobre o contrabando em Montalvão
suscita-me o retorno a uma ideia que defendi há algum tempo, aquando das
comemorações dos 500 anos do Foral de Montalvão, e que é a possibilidade de as
instâncias autárquicas locais e concelhias avançarem para a criação de um
pequeno museu do Contrabando que permita recordar e manter vivas as memórias
dessa epopeia de homens e mulheres que, ao longo de gerações, arriscaram as
suas vidas nesse vaivém transfronteiriço para dar de comer aos seus filhos.
Jorge Rosa