15.4.12

À FLOR DA PELE: Evocação de José Miguéns, o Ti Vara

JOSÉ MIGUÉNS: Vida e memória de um resistente
José Lopes Valente Miguéns, o ti Vara, faleceu no passado dia 2 de Abril, numa instituição de Vila Velha de Ródão, onde se encontrava desde há algum tempo, após ter sido acometido de grave doença.
Morreu em Abril, o cidadão, o autarca, o militante comunista que mais fez pela sua terra e freguesia, S. Simão – Pé da Serra, após o 25 de Abril.
O povo da sua terra e do concelho de Nisa, que amou como poucos, tributou-lhe uma sentida e vibrante homenagem de despedida no dia seguinte, incorporando-se no seu funeral centenas e centenas de pessoas, amigos, autarcas, cidadãos anónimos de todo o concelho.
O seu percurso como cidadão, resistente e autarca foi devidamente assinalado pelo actual presidente da Junta de Freguesia de S. Simão, José Hilário, que destacou a dedicação, o dinamismo e o contributo de José Lopes Miguéns para o desenvolvimento da freguesia e na implantação de infra-estruturas básicas como a água, o saneamento básico e as vias de comunicação.
É este o “homem de Abril” que aqui evocamos, hoje, tendo como referência uma entrevista feita num fim de tarde de Verão, já lá vão uns anitos.
José Lopes Valente Miguéns, o Ti Vara, tinha 81 anos e um percurso de mais de 25 anos como autarca.
O Ti Vara, foi uma figura emblemática do Pé da Serra e de todo o extremo norte do concelho de Nisa, conversador nato, alegre, bem disposto, sempre disponível para trazer ao presente, histórias, relatos, memórias, que tanto podiam falar dos tempos difíceis da emigração e do salazarismo, como da "fama vermelha" do Pé da Serra.
Uma "fama" que, segundo alguns habitantes, sem razão de ser, apenas justificada pelo desejo de aprender de muitos jovens do seu tempo e pelo ostracismo a que a freguesia era votada pelos "senhores de Nisa".
Guardador de rebanhos
José Miguéns andou na escola no Pé da Serra onde fez a 4ª classe, tendo a D. Georgete como professora. Acabada a escola tomou o rumo de outros companheiros seus, fez-se à vida, que esta era dura e de poucos proventos. Foi para Cabeço de Vide, servir como empregado de balcão (caixeiro) numa mercearia e taberna. Esteve lá dois anos, em casa do senhor José Marcelino Malheiro, após o que voltou para o Pé da Serra. Aqui, aguardava-o o trabalho mais comum para uma criança feita homem em três tempos: a de guardador de vacas em Montes de Matos, função que desempenhou durante um ano. Na aldeia foi guardador de rebanhos, borregos, porcos, até completar a maioridade.
Era a vida de quase toda a gente nesse tempo e como se ganhava pouco, resolveu alistar-se como voluntário e assentar praça na vida militar, em Tomar. Andou na tropa um ano e alguns meses. Regressou ao ponto de partida, a sua aldeia encostada à serra de S. Miguel, onde continuou a trabalhar por conta de outrem, a cortar azinheiras e a fazer carvão.
Uma vida dura, a de carvoeiro, conforme teve ocasião de nos explicar.
"No Pé da Serra havia três ou quatro negociantes de carvão. Nós derrubávamos as azinheiras, cortávamos as pernadas e fazíamos os fornos, que eram feitos com terra. Depois eram desaterrados e tirávamos o carvão. Era um serviço de grande dureza. Nessa altura já estava casado. O carvão saía daqui com destino a vários sítios desde o Entroncamento, Lisboa, Castelo Branco e outras localidades. Havia muita procura desse material. Este trabalho era sazonal e no Inverno ia trabalhar para o lagar. Andei assim durante vários anos, até que meti na cabeça ir para França."
A "salto" rumo a França
Puxando pela memória, o "Ti Vara" conta as aventuras e desventuras da ida para a França, a salto.
"Demorámos 18 dias a chegar. Fomos abandonados pelo passador, durante três ou quatro dias, sem saber o que fazer, escondidos num barracão, a poucos quilómetros da fronteira espanhola, próximo de Medelim, mas, felizmente, não desesperámos e às tantas lá apareceu o homem com um camião que nos transportou Espanha adentro. No camião iam cento e tal pessoas, de várias terras do país, parecíamos sardinha em lata. Durante a viagem que demorou mais de 12 horas, nunca parámos nem para urinar, tínhamos que o fazer para dentro de um bidon. Quando chegámos a Hendaia, já na França, deram-nos um bilhete de comboio para irmos até Paris e que cada um se desenrascasse. Em Paris, numa grande cidade e sem perceber uma palavra de francês, lá consegui alugar um táxi que me foi pôr e ao outro camarada à região de Dijon, no departamento 21, onde havia malta do Pé da Serra. Um dos conterrâneos emprestou-me o dinheiro para pagar o táxi e o primeiro ordenado que recebi em França foi para lhe pagar a ele. Era assim que as coisas funcionavam. Lembro-me que paguei sete contos e quinhentos ao passador, o que era muito dinheiro naquela altura.
Comecei a trabalhar na agricultura, a tratar de gado. Depois fui para a construção civil como servente de pedreiro. Ali aprendi alguma coisa e comecei a desenrascar-me nalguns trabalhos nesta profissão".
Da França para a Alemanha
Estava dado o primeiro passo rumo à independência económica e a melhores condições de vida. Perdidas as reticências iniciais, José Miguéns ruma até à Alemanha.
"Na França não se ganhava mal, mas na Alemanha o ordenado e as condições ainda eram melhores. Arranjei um contrato de trabalho e fui para Colónia. As principais obras onde trabalhei eram as do Metropolitano. As dificuldades eram a língua, mas havia muitos portugueses e nós, uns com os outros, íamos desenrascando. Estive três anos na Alemanha, e gostava de trabalhar naquele país e depois tive de decidir porque a minha filha tinha saído professora e havia que escolher entre a Alemanha e Portugal, e assim regressei ao Pé da Serra, retomando a vida de pedreiro por conta própria.”
As ideias políticas
Próxima do Tejo e da raia, o Pé da Serra sempre foi uma terra de emigrantes e de contactos com outros povos, nomeadamente no período da guerra civil espanhola (1936-1939). Denominados como “montezinhos”, os seus habitantes não caíram nas boas graças do poder municipal de Nisa e daí a haver alguma discriminação e ostracização política foi um pequeno passo.
José Miguéns rejeita a ideia de a freguesia ter sido um centro de ideias revolucionárias, antes do 25 de Abril.
"Nós aqui não tínhamos, propriamente, ideias políticas. O que havia era uma malta que gostava de ler, de aprender, de se informar e depois começávamos a perguntar. Por outro lado, sentíamos que havia discriminação da Câmara de Nisa para com a freguesia de S. Simão. Até ao 25 de Abril, tínhamos uma estrada miserável, cheia de buracos, em terra batida. Não tínhamos praticamente mais nada e não se faziam aqui obras. Hoje, felizmente, é bem diferente..."
"O grande empurrão foi, sem dúvida, a campanha das eleições para a presidência do general Humberto Delgado. Aqui no Pé da Serra, o Humberto Delgado tinha muito apoio e estou convencido que perdemos as eleições, tanto aqui, como no país, porque houve "marosca". Eu andei a colar os cartazes da campanha, tinha montes deles em casa. Quando foi no dia das eleições, os elementos da mesa eleitoral, que vieram de Nisa não me deixaram entrar para fazer o meu trabalho de delegado. Eu sentei-me numa janela em frente à Junta e ia descarregando num papel, todas as pessoas que iam votar. Pelas minhas contas a vitória não falhava, mas as contas eram feitas de outra maneira...
Eu ia a Nisa buscar os cartazes que me dava o Dr. Chambel, um dos maiores democratas que Nisa tinha e foi tão injustamente esquecido, e um dia ele disse-me: " Ainda não foi desta vez que ganhámos, mas esteve quase. Para a próxima não falha, pois isto não pode assim continuar. Se todos fossem como tu, outro galo cantaria".
Havia alguma consciência política, de esquerda e em 1973, na Alemanha fui votar com a minha mulher na CDE, por correspondência, ao consulado de Dusseldorf.
Na Alemanha e antes do 25 de Abril estava já organizado, reuníamos na sede do DKP (Partido Comunista Alemão) e eu fazia a distribuição nos fins-de-semana ou após o trabalho, de exemplares do "Avante" aos nossos compatriotas."
O regresso e a eleição como autarca
Após o regresso da Alemanha, já com o "bichinho da política" e a liberdade alcançada, foi sem surpresa que José Miguéns se viu no papel de presidente da Junta de Freguesia.
"Quando vim para Portugal, foi engraçado porque um dos meus encarregados, alemão, dizia-me: "o que vais tu fazer para Portugal se já lá não há dinheiro, pois deram cabo dos bancos?", e eu respondi-lhe que sempre havia de haver alguma coisa para comer e repartir com a família.
Fui eleito presidente da Junta e estive 24 anos como presidente. As obras de que mais me orgulho? Fico muito contente com construção e instalação do Centro de Dia e das pessoas idosas terem um local para estarem, serem atendidas, conviver. Estou contente de quase todas as ruas estarem calcetadas, talvez pudesse ter feito mais alguma coisa, mas daquilo que foi feito sinto-me orgulhoso.
Confesso que tinha grandes problemas em deixar a Junta pois receava que quem viesse não tivesse as mesmas ideias e a mesma dedicação em prol da freguesia, mas felizmente a CDU arranjou uma pessoa que dá todas as garantias e de quem tenho o maior regozijo de ver à frente da Junta."
As “Escadinhas do Ti Vara”
Ainda em vida, que é quando as homenagens devem ser feitas, José Lopes Valente Miguéns foi alvo de significativa homenagem. Uma rua do Pé da Serra passou a ter o seu nome. Lá está gravada no granito, a designação “Escadinhas do Ti Vara”, ali a dois passos da sede da Junta.
Homenagem singela que fica a perpetuar pelos tempos fora, o nome de um pé-de-serrense que se dedicou de alma e coração a trabalhar e a engrandecer a sua freguesia.
"Fiquei muito contente e com grande orgulho porque representou o reconhecimento de ter lutado por uma causa e também pela minha terra. Foi uma bela iniciativa do Dr. José Manuel Basso, a qual agradeço bastante, bem como a todas as pessoas, de todas as forças políticas que vieram nesse dia ao Pé da Serra."
O futuro da freguesia
Na altura, o futuro das freguesias, enquanto órgãos de poder local mais próximos das populações não estava, como hoje está, a ser posto em causa.
José Lopes Miguéns falava da “sua” freguesia com carinho e enlevo. Recordou a luta travada para vencer inúmeras barreiras burocráticas que impediam a concretização de obras essenciais, não obstante, deixou uma mensagem de esperança
"S. Simão como freguesia não se pode queixar muito. Têm sido feitas obras nos últimos anos, mas nem todos os problemas estão resolvidos. O principal, para mim, é a falta da qualidade da água. Agora tem havido em quantidade. Outro problema que é preciso resolver com urgência é o da rede viária. A freguesia tem, neste momento, as piores estradas e nem falo na Estrada da Vinagra que é, de facto, uma vergonha. Falta-nos um lar para os idosos e muitas das pessoas que podiam vir de Lisboa e de outros sítios para o Pé da Serra, acabam por ir para outras localidades. Com um lar muitas das pessoas reformadas e idosos regressariam à terra. Lanço um apelo para que haja mais vontade para resolver este problema."
Lembrar e homenagear o Dr. Chambel
A nossa conversa estava a chegar ao fim e o ti Vara, detentor de boa memória, não esqueceu alguns democratas que pereceram na voragem do tempo e do esquecimento, por parte da comunidade.
"O Dr. Chambel era um grande lutador pela Democracia, pelos direitos humanos e sofreu muito com isso. Lutou praticamente sozinho no nosso concelho para mudar o rumo às coisas, para que tivéssemos um governo eleito pelo povo, liberdade de opinião e reunião, por melhores condições de vida para os portugueses. Depois do 25 de Abril ninguém se lembrou dele, deixaram que a sua luta e o seu exemplo não fosse lembrado e devidamente homenageado. É preciso libertar a memória deste Homem como grande lutador pela democracia que o concelho de Nisa teve. É um acto de justiça."
A esperança não morre
José Lopes Valente Miguéns, o Ti Vara, partiu, há dias, do nosso convívio. Não chegou a ver nascer o Lar da freguesia. É pouco provável que alguma vez ele seja erguido.
A estrada da Vinagra deixou, entretanto, de ser uma “vergonha”. Está transitável, o Pé da Serra tem já a sua ETAR, o lagar fechou e está ao abandono, a freguesia e o concelho têm cada vez menos habitantes.
As políticas centralizadoras e de abandono do interior, condenaram a nossa região a uma morte anunciada, não tão lenta como seria espectável. O deserto avança a passos largos, mas na memória dos homens e dos lugares, os exemplos como os do Ti Vara ficarão a marcar, de forma indelével, a história de um tempo que foi de esperança e de luta, por um futuro melhor.
Obrigado, Zé Lopes!
Mário Mendes in "À Flor da Pele" - "Alto Alentejo" 11/4/2012