4.4.12

CRÓNICAS DE LISBOA: A Minha Escola Primária

Na década de 50/60, o nosso país assistiu a um “baby boom”, principalmente no meio rural e, apesar das carências de toda a ordem, a média de filhos, por casal, situava-se entre os cinco e os dez. O regime “defendia” um certo analfabetismo da população, como estratégia, mas lentamente foi alargando a obrigatorieade do ensino primário e com o DL n.º 42 994 de 28 de Maio de1960 (não terá sido por acaso esta data que assinalava mais um ano comemorativo da “revolução” de 1926) que: “Declara obrigatória a frequência da 4.ª classe para ambos os sexos. Há um só ciclo de 4 anos que termina com a aprovação de um exame na 4.ª classe. O período etário da escolaridade obrigatória é entre os sete e os doze anos, feitos até 31 de Dezembro do ano a que respeita a matrícula.” Quer pela medida em si quer pelo grande número de crianças em idade escolar, deu-se início a um programa de construção de escolas novas de modelo único cuja diferença residia apenas se tinham uma ou duas salas de aulas. Por exemplo, na minha freguesia beirã foram construídas quatro escolas novas e hoje apenas uma se mantém activa, aquela que eu frequentei nos meus quatro anos de instrução primária! Naquele meio rural, apesar de distar apenas uma dezena de quilómetros da capital do distrito, o universo dos alunos tinha alguma heterogeneidade, dependendo menos do QI de cada um e mais da iliteracia familiar, influenciando a “vocação” das crianças perante a escola. Por exemplo, se o meu pai já tinha a 4ª classe, a minha mãe era analfabeta, discriminação muito comum nas mulheres da época. Era um ensino muito exigente e rigoroso, com o poder incontestado dos mestres e que tinha coisas boas, mas sem qualquer tipo de benefícios. As matérias de português, história, cálculo, geografia, etc, eram ministradas com profundidade, embora o maior defeito assentasse numa certa memorização. Tínhamos que saber, na “ponta da língua”, os réis/reinados, os rios e seus afluentes, vias férreas, etc e a tabuada era aprendida em canto colectivo pela turma - “dois vezes um, dois; dois vezes dois, quatro....nove vezes nove, oitenta e um...”.
Aquele ciclo terminava com o exame da 4ª classe e, na província, era efectuado na capital do distrito e a aprovação era um importante marco na vida de uma criança. Ao conclui-lo, o jovem saía com um bom manancial de conhecimentos para a vida, caso não prosseguisse os estudos, o que acontecia aos mais pobres. Infelizmente e para muitos, tal como hoje se verifica também, iniciava-se um apagão e começava um certo tipo de analfabetismo, por falta de contactos com os saberes.
Quanto ao meu exame final, lembro-me, como se fosse hoje, e também recordo o carinho e a ajuda que a minha professora, que vivia na cidade, me deu por me ter levado para a sua própria casa, alojando-me da véspera, pois eu teria dificuldades em estar na prova de exame à hora marcada. Tratou, como um príncipe, um menino pobre da aldeia. No final do exame, tinha a minha mãe à espera e o seu analfabetismo e pragmatismo, na dura luta pela sobrevivência, qual mãe coragem que tinha a seu cargo cinco filhos e com o marido em internamento hospitalar há muito, incitou-me, mais tarde, a emigrar em vez de optar (aos quinze anos) por prosseguir os estudos, como trabalhador-estudante. Mas não lhe fiz a vontade e até compreendia que os “marcos e os francos” que os meus ex-colegas emigrantes traziam nas férias, fazendo vida de rico e eu, já empregado em Lisboa e trabalhador-estudante, fazia figura de pobretana, a confundissem. Nesse longo percurso (dos quinze aos trinta e dois anos) e com as duas tarefas, trabalhar e estudar, foi muito o sofrimento, os sacrifícios e tristeza, esta a começar no dia em que fiquei aprovado com o diploma da instrução primária. Em vez de alegria, apoderou-se de mim uma certa tristeza, por saber que a minha vida escolar terminaria nesse dia, ao contrário de três colegas da minha turma que iriam prosseguir os estudos na cidade. Para mim e muitos outros, apesar dos meus onze anos, iria começar uma vida de trabalho, para não lhe chamar de escravatura. Era a luta pela sobrevivência e sem subsídios, como há hoje! Aliás, eram muitas as vezes que eu faltava às aulas para ajudar a minha mãe, na vida do campo, e que eu compensava com a minha aptidão para aprender. Cheguei onde os privilegiados chegaram e, apesar da minha longa vida escolar, reconheço que a instrução primária me marcou, porque ocorre numa idade muito importante da nossa formação e porque estamos ávidos de aprender.
Face á decisão do actual Governo em voltar a instituir o exame da 4ª classe, agora não como etapa final, logo os defensores da “igualdade” no ensino e que tem levado á perda de qualidade, se insurgiram contra esta medida, alegando que vai favorecer um certo elitismo. Para eles, aqui deixo o meu testemunho, embora decorridos mais de cinquenta anos. Pobres daqueles (crianças, jovens, etc) a quem o facilitísmo é servido desde a escola primária, porque a vida é dura e se não soubermos prepará-los, teremos um enorme “exército de indignados”, mesmo que tenham altos diplomas escolares, o que não significa terem boa formação e preparação para a vida.
Serafim Marques - Economista