20.8.16

FIGURAS POPULARES DE NISA: O Ti Camilo

(...) Meus avós moravam no prédio número oito da Rua Dr. Mário Monteiro e, ali perto, a uns escassos vinte ou trinta metros, fica o Largo dos Postigos – assim chamado devido a umas portas que lá havia, no tempo das antigas muralhas.
Como todas as crianças, aquele largo fascinava-me pela sua amplitude; ali podia brincar, correr e saltar, livre e despreocupadamente.
Neste recanto da Vila, havia duas garagens, pertença do senhor Aníbal Vieira e cujo motorista, o António Tomás, abria diariamente; uma oficina de “carpinteiro de obra grossa”, de que era proprietário o Ti Quintino e um palheiro cujo dono era o Ti Camilo.
Era este um homem de idade; quando o conheci, já ele tinha bem mais de setenta anos.
Coabitava com um irmão: - O Ti Tonho.
Vivia da agricultura, tendo por isso muitos animais domésticos: - borregos, cabras e ovelhas, um cão a quem chamava “Manjerico”, uma cadela que respondia pelonome de “Ligeira”, um macho castanho e um burro preto a quem baptizara de “Jerico”.
 Vendo tantos animais – o delírio dos pimpolhos daquela idade – lá passava todo o tempo que podia e ao velhote me fui afeiçoando.
Quem não gostava nada desta “camaradagem” era os meus pais e avós, pois no regresso a casa, vinha sempre sujo, cheio de palhas e com o pequeno corpo servindo de manjar às muitas pulgas que por lá impunemente imperavam, descansadas por saberem que o Ti Camilo as não ia molestar com o DDT ou qualquer outro produto químico inventado pelo homem, para extermínio de tão incómodo quanto nojento animal.
Até a vizinhança me queria cortar aquelas horas de prazer, alegando que não era próprio para um menino como eu, “filho e neto de professores”, andar metido com um homem tão sujo como era o Ti Camilo e, também, porque ia por lá aprendendo a dizer alguns palavrões, “nomes feios”, como eles diziam.
Coitados, pensavam eles que a diferença de nascimento é barreira intransponível para o bom relacionamento entre os homens...
Estavam, como é evidente, redondamente enganados e, se alguma coisa sei no campo da etnografia, a esse homem simples devo parte dos conhecimentos, bem como a paixão que nutro pela romântica e saudável vida campesina; quanto aos “nomes feios” que me valeram algumas sovas e castigos sempre os viria a aprender, sabe Deus se noutro local e com mais graves implicações.
Só o primo Fernando e a prima Maria dos Remédios me “faziam capa”, chagando ao ponto de, antes de ir para casa, passar pela residência deles, que era ali perto, no Largo do Município, para me limparem o fato, lavarem a cara e porem álcool nas babas de pulga; podia andar por lá à vontade, vir sujo, que eles resolviam o assunto e não teria problemas ao reencontrar a família mais chegada.
Após o falecimento de meu avô, veio minha avó residir para um prédio pegado com o deles e, em todas as férias eu aqui passava uns dias completamente à vontade.
Posto isto, quem era, afinal, o Ti Camilo?
João do Rosário Camilo Sena, de seu nome completo, nascera em Nisa, ali crescera, vivera e envelhecera.
Não sabia ler nem escrever, que nos tempos da sua meninice, os pais queriam era braços para o trabalho e não mandavam os filhos “aprender as letras”.
Era magro, de pequena estatura, a cabeça semi despovoada de cãs, sem vestígios de dentes a ornamentarem-lhe os maxilares que já há muito tinham mirrado.
Só fazia a barba de oito em oito dias.
Não tinha cama, dormia na palha, em cima de umas sacas e, aparava as unhas dos quatro membros com a mesma navalha que cortava o pão e o “conduto”.
Levantava-se com o sol.
Espreguiçava-se e dava uns bocejos.
Como dormia vestido e calçado, não tinha demoras a fazer a “toilette”.
Abria a porta do palheiro, atravessava o Largos dos Postigos e ia ao “chão” – pedaço de terreno cercado de paredes, onde tinha uma cabana para o gado pernoitar.
Aí ordenhava uma cabra, para dentro da “ferrada”, quantas vezes cheia de pó, palha ou formigas, regressando depois ao palheiro.
Sem ferver o leite, adicionava-lhe um pouco de café e de açúcar, que guardava dentro de uma velha e desconjuntada “arca” e deliciava-se a saboreá-lo, juntamente com um bocado de pão com queijo, que ele próprio fabricava.
Em seguida, punha o cabresto ao Jerico e, no dorso do mesmo animal, colocava umas sacas que faziam as vezes de albarda; soltava as cabras, pedia a um vizinho ou transeunte que lhe”desse o pé” para montar o pobre jumento e lá ia para as “tapadas” e os “bacelos” guardar a sua cabrada.
Se era Verão, e porque tinha muito medo do sol, levava um grande guarda-chuva aberto, qual João Semana de trazer por casa.
Almoçava no campo, o pão com o queijo e com morcela que levava dentro do “sarrão” e só voltava a casa ao sol posto.
Nessa altura, era o encontro dos dois irmãos.
O Ti Camilo que, montado no burro voltava com as cabras e, o Ti Tonho, a pé, como nos tempos em que fora soldado da Guarda Nacional Republicana, voltava com o rebanho de ovelhas.
Quando, no firmamento, apareciam as primeiras estrelas, a anunciar aos homens que o dia cessara, lá eles se encontravam tentando “derrotar” uma grande “bacia” de barro, cheia de sopas de batata ou de feijão frade, acompanhada, à laia de sobremesa, por uma enorme “bóia de toucinho” para cada um.
Comiam ambos da mesma malga, cada um de seu lado da mesma.
E como tinham bom apetite!!!
Era um gosto vê-los saborear aqueles manjares que a nós, homens quase deformados pelo excesso de civilização, por certo causariam abundantes náuseas...
Muitas vezes montei o seu Jerico, muitos tombos dele caí e muito ouvi ralhar por me arvorar no fiel companheiro de D. Quixote de La Mancha.
Todavia, mereceu a pena; comecei a interessar-me por aquela vida simples que aqui deixo mal descrita. Aprendi a amar a natureza em toda a sua plenitude, e o que foi mais importante, aprendi a conviver com as pessoas simples e despretensiosas, que são, afinal, quase sempre as mais puras e sinceras.
Só uma vez aquele homem, que no inverno vestia safões feitos de pele por ele curtidas, calçava botas grossas e cardadas, feitas pelo Ti Passão punha pelas costas um pelico castanho e na cabeça uma carapuça preta, me conseguiu causar certa repugnância.
Como sempre, foi ordenhar a cabra vermelha que dava pelo nome de “Cardosa”, preparou o café da maneira que atrás descrevi, provou-o com uma colher que previamente limpara às calças muito surradas, deitou-o numa tijela de barro já muito desbeiçada e, por gentileza que em infeliz hora lhe ocorreu, obrigou-me a bebê-lo.
Com sacrifício aceitei e a custo engoli.
Porém, pouco depois, tive que sair do palheiro e ir vomitar à azinhaga mais próxima.
É que o “menino João”, filho e neto de professores, como dizia a vizinhança, naquele dia não conseguiu ter domínio sobre o estômago esquisito e habituado a outros acepipes, servidos em melhores condições.
Mas, é este um dos episódios que mais me apraz recordar, cada vez que falo do Ti Camilo.
Homem honesto, senhor de alguns bens de fortuna, jamais se adaptou ao progresso e às regras de higiene ditadas pelo mundo em que vivia.
Talvez cansado da vida já longa, talvez desiludido, acabou seus dias no mês de Agosto de 1969, dependurado de uma “madre” do palheiro onde sempre vivera, sonhara e se veio a suicidar.
Paz à sua Alma, Ti Camilo!
 João Ribeirinho Leal in "Motivos Alentejanos"