28.2.21

OPINIÃO: 40 anos de distância: um sonho intergeracional

A 26 de fevereiro de 2021, Ano Europeu da Ferrovia, comemoram-se os 40 anos do recorde de velocidade sobre carris - 380 km/h - que a Société nationale des chemins de fer français (SNCF) atingiu na linha Paris-Lyon com o seu Train à Grande Vitesse (TGV). Esse marco histórico reforçou um caminho iniciado em Itália, para inúmeras infraestruturas que vieram permitir serviços de alta velocidade ferroviária na Europa.
Em 2009 a Europa tinha cerca de 6.000 km de linhas de alta velocidade em operação e, à data, Portugal tinha cerca de 1.000 km planeados (após uma jornada que se iniciou na década de 80). Hoje, a Europa tem mais de 10.000 km em operação e mais 2.000 km em construção. Não obstante, Portugal viu o seu planeamento profundamente prejudicado pela última crise financeira e respetivo travão político do governo de Passos Coelho.
A opção austeritária e a inabilidade negocial do governo PSD/CDS com a troika, condenou o país a vários anos de atraso em investimentos estruturantes. Para um partido que travou a Alta Velocidade, que tantas vezes apontou atrasos no Ferrovia 2020, que num mea culpa exige a ligação entre o Pocinho e Barca D"Alva (não inferior a 100 M€), que apresenta valores subestimados para a ligação Lisboa-Porto (1.500 M€ quando as estimativas apontam para 4.500M €), não resta coerência ou rigor político.
O governo está agora a dar vários passos, tanto nos serviços urbanos como regionais. Está em marcha a modernização da linha de Cascais e praticamente concluído o troço ferroviário entre a Covilhã e a Guarda. Passados cerca de 10 anos de mais uma frenagem política, a área metropolitana de Lisboa pode aspirar a serviços ferroviários modernizados, e o interior volta a ter a Linha da Beira Baixa ao serviço dos passageiros e das mercadorias do país. Decorrem trabalhos para a modernização dos 200 km da Linha da Beira Alta e, mais a sul, está assegurada a intervenção na linha de Sines, assim como, a nova linha de Évora a Caia. A eletrificação da rede avança na Linha do Douro e está prestes a concluir-se na Linha do Minho. Temos obras em curso no troço Espinho-Gaia e o Ovar-Espinho entrará em concurso de empreitada este ano. Após os estudos de impacte ambiental os troços da linha do Algarve entraram em procedimento de contratação pública, e a Linha do Oeste tem já o seu troço entre Meleças e Torres Vedras em trabalhos no terreno.
Portugal volta agora a equacionar a alta velocidade, inscrevendo nos seus instrumentos de planeamento (Programa Nacional de Investimentos 2030) e de financiamento (próximo Quadro Financeiro Plurianual e Connecting Europe Facility) uma ligação entre Lisboa e Porto.
Decorre a aquisição e recuperação de material circulante da CP. Com este reinvestimento - de curto prazo - criou-se emprego em Portugal (nem todo altamente qualificado, mas por outro lado, muito especializado); diminuíram-se supressões e fragilidades da operação dos serviços urbanos; prepararam-se ativos estratégicos para o turismo; dignificou-se um património histórico com valor incalculável e colocou-se em prática a tão repetida "economia circular".
O Tribunal de Contas Europeu, (TdCE) numa auditoria à Rede ferroviária de alta velocidade na Europa de 2018, sinalizou fortes críticas ao planeamento estratégico destas infraestruturas e concluiu que essa fase, raras vezes demora menos de 20 anos. A este tempo acrescem, em média, cerca de 16 anos, desde o início das obras até à entrada em funcionamento. Por este motivo, facilmente se compreende a importância da determinação política e dos passos seguintes que se avizinham: mobilizar o país para um Plano Ferroviário Nacional (PFN) e qualificar os profissionais do setor.
Pese embora não existam referências do TdCE ao enquadramento social e financeiro da última crise, de facto, colocou-se um travão ao planeamento de infraestruturas, comprometendo vários anos de trabalho técnico e financiamento público (português, espanhol e europeu). O planeamento da alta velocidade ficou comprometido e não podemos omitir que a falta/ausência de decisão, a suspensão ou o adiamento deste tipo de investimentos tem um custo: a oportunidade. Esta oportunidade merece ser estudada, pois a ausência de exercícios de avaliação remete-nos para um desconhecimento que não permite evitar semelhantes erros no futuro.
O novo aeroporto da região de Lisboa, a nova travessia sobre o Tejo, as novas ligações de alta velocidade, de facto, não são assim tão novas. Cada decisão que faça alterar o planeamento, tem um impacte considerável na mobilização de recursos e a complexidade destes investimentos não permite a sua posterior recuperação num curto espaço de tempo.
Embora as exigências financeiras obriguem à definição de prioridades, a discussão sobre a coesão e resiliência territorial tem de estar em cima da mesa. O debate do PRR e o arranque do PFN permitem essa discussão, mas convenhamos, estamos a mais de 40 anos de distância dos franceses. Podemos recuperar oportunidades perdidas, mantendo a confiança de que a ferrovia será um grande motor de desenvolvimento sustentável para acelerar o futuro de Portugal. É esse sonho intergeracional que o governo está a concretizar.
Filipe Beja in "Jornal de Notícias" - 26/2/2021

* Engenheiro do Território e autor da dissertação de mestrado com o tema "Impactes da Alta Velocidade Ferroviária na transformação do Território - O troço português da Ligação Lisboa -Madrid"