Hoje votaremos na Assembleia da República os projetos que
visam despenalizar a morte assistida. Esta não é a causa de um só um partido, e
muito menos só do meu. Atravessa campos políticos, convicções religiosas e
convoca, como poucos outros assuntos, o que a nossa consciência mais tem de
pessoal: a relação de cada um com o sofrimento e a morte, sua e dos outros.
Queria começar por lembrar que votaremos a letra dos
projetos de lei, e não os argumentos desonestos de quem escolheu não fazer este
debate com seriedade. Estes projetos não abrem a porta à eugenia e não provocam
a morte assistida em doentes psiquiátricos, crónicos ou idosos. Estes projetos
propõem a despenalização da morte assistida apenas quando exista a combinação
cumulativa de quatro situações: um diagnóstico de doença incurável e fatal ou
lesão definitiva; um prognóstico de que essa doença é incurável e fatal; um
estado clínico de sofrimento duradouro e insuportável; um estado de consciência
que demonstre a plena lucidez e capacidade para entender o alcance do pedido.
Bem sei que o argumento que se segue é o da insuficiência da
rede de cuidados paliativos. Estamos de acordo quanto à identificação dessa
insuficiência e à necessidade de a suprir. Mas os cuidados paliativos não são
uma alternativa à eutanásia. Tal como demonstra um estudo na "Palliative
Medicine", uma reputada revista da área, a maior parte das pessoas que
solicitaram a morte assistida na Bélgica tinha acesso a cuidados paliativos. O
que está em causa é sempre a decisão de cada um face ao sofrimento que pode ser
subjetivo para outros mas que, para si, é muito objetivo e real.
Partilhamos o princípio de que a vida é um direito. Mas a
forma como interpretamos esse princípio é plural. Há, entre nós, quem entenda
que a sua vida é um dom de Deus, que só Ele pode retirar. Há quem não acredite
em Deus mas pense que a vida, enquanto a existência física no Mundo, é
inviolável. Há quem ache que morrer é desistir.
Discordo destas interpretações mas entendo que cada pessoa
decida sobre a sua vida, e a sua morte, de acordo com elas. Pessoalmente, acho
que a vida é mais que a mera sobrevivência do corpo, e que dignidade é poder
preservar, respeitar e elevar essa vida. Pode acontecer que um dia o corpo me
sobreviva à dor e à consciência de que isso é tudo o que me resta, até morrer. Condenarem-me
a sobreviver nessa condição contra a minha vontade viola tudo aquilo que
considero humanista ou sagrado. Quando esse dia chegar quero apenas poder tomar
a decisão que dignifica a minha vida, que lhe dá mais valor.
Seja qual for a nossa escolha pessoal, não temos o direito,
como deputados e deputadas, de impor uma única forma de decidir sobre a vida e
a sua dignidade. Ao aprovar a despenalização da morte assistida, estaremos a
permitir que as pessoas façam as suas escolhas mais difíceis em liberdade,
consciência e segurança.
Mariana Mortágua in “Jornal de Notícias” – 29/5/2018