29.5.18

OPINIÃO: Aos deputados e deputadas

Hoje votaremos na Assembleia da República os projetos que visam despenalizar a morte assistida. Esta não é a causa de um só um partido, e muito menos só do meu. Atravessa campos políticos, convicções religiosas e convoca, como poucos outros assuntos, o que a nossa consciência mais tem de pessoal: a relação de cada um com o sofrimento e a morte, sua e dos outros.
Queria começar por lembrar que votaremos a letra dos projetos de lei, e não os argumentos desonestos de quem escolheu não fazer este debate com seriedade. Estes projetos não abrem a porta à eugenia e não provocam a morte assistida em doentes psiquiátricos, crónicos ou idosos. Estes projetos propõem a despenalização da morte assistida apenas quando exista a combinação cumulativa de quatro situações: um diagnóstico de doença incurável e fatal ou lesão definitiva; um prognóstico de que essa doença é incurável e fatal; um estado clínico de sofrimento duradouro e insuportável; um estado de consciência que demonstre a plena lucidez e capacidade para entender o alcance do pedido.
Bem sei que o argumento que se segue é o da insuficiência da rede de cuidados paliativos. Estamos de acordo quanto à identificação dessa insuficiência e à necessidade de a suprir. Mas os cuidados paliativos não são uma alternativa à eutanásia. Tal como demonstra um estudo na "Palliative Medicine", uma reputada revista da área, a maior parte das pessoas que solicitaram a morte assistida na Bélgica tinha acesso a cuidados paliativos. O que está em causa é sempre a decisão de cada um face ao sofrimento que pode ser subjetivo para outros mas que, para si, é muito objetivo e real.
Partilhamos o princípio de que a vida é um direito. Mas a forma como interpretamos esse princípio é plural. Há, entre nós, quem entenda que a sua vida é um dom de Deus, que só Ele pode retirar. Há quem não acredite em Deus mas pense que a vida, enquanto a existência física no Mundo, é inviolável. Há quem ache que morrer é desistir.
Discordo destas interpretações mas entendo que cada pessoa decida sobre a sua vida, e a sua morte, de acordo com elas. Pessoalmente, acho que a vida é mais que a mera sobrevivência do corpo, e que dignidade é poder preservar, respeitar e elevar essa vida. Pode acontecer que um dia o corpo me sobreviva à dor e à consciência de que isso é tudo o que me resta, até morrer. Condenarem-me a sobreviver nessa condição contra a minha vontade viola tudo aquilo que considero humanista ou sagrado. Quando esse dia chegar quero apenas poder tomar a decisão que dignifica a minha vida, que lhe dá mais valor.
Seja qual for a nossa escolha pessoal, não temos o direito, como deputados e deputadas, de impor uma única forma de decidir sobre a vida e a sua dignidade. Ao aprovar a despenalização da morte assistida, estaremos a permitir que as pessoas façam as suas escolhas mais difíceis em liberdade, consciência e segurança.
Mariana Mortágua in “Jornal de Notícias” – 29/5/2018