Ação, reação. Cultiva-se o ódio primário, colhem-se os
piores instintos. Ação, reação: transforma-se o futebol numa batalha medieval e
depois chora-se, compulsiva e desavergonhadamente, sobre os corpos mutilados.
Como se o cenário nesse descampado de estropiados tivesse sido gerado por
causas naturais. Não foi. Andamos há demasiado tempo a lançar bolas de fogo na
esperança de que ninguém se queime. Podemos sentir-nos indignados. Mas não
surpreendidos. O futebol devia ser um objeto esférico saltitante e 11 atletas
de cada lado. Ganham uns, perdem outros. Mas não é. Há muito que não é em Portugal. A guerra
civil que alastra no Sporting é apenas o reflexo em três dimensões dessa
cultura de ódio que se enraizou como um cancro. De um fervor que cega tantos de
tal maneira que não hesitam em seguir, como um exército de autómatos, os
exemplos deploráveis de quem gere multidões com a ponderação de um
esquizofrénico mal dormido.
O que aconteceu na Academia de Alcochete não envergonha
apenas o Sporting. Nem o futebol. Envergonha todos aqueles que gostam deste
desporto maravilhoso. Envergonha o país. Mas agora ponha o dedo no ar quem não
imaginava que algo parecido pudesse suceder. Atendendo ao histórico. Atendendo,
sobretudo, à vertigem autofágica de um homem que lidera uma instituição grandiosa
num permanente rasgo bipolar. Bruno de Carvalho, o adepto, versus Bruno de
Carvalho, o presidente. Agredir jogadores, agredir treinadores, agredir a
imagem e a credibilidade de um clube tão intrinsecamente português como o
Sporting é embarcar numa viagem que pode não ter retorno. O clube não cuidou
dos seus. Dos mais importantes a cuidar: os jogadores.
Mas não chamemos adeptos a bandidos de cara tapada. Eles não
representam o Sporting. Agem em nome de uma ira que os oxigena e sufoca e
porventura respaldados por uma liberdade de ação que alguém terá legitimado.
Que não restem dúvidas: eles não gostam de futebol. Infelizmente, não são uma
tralha exclusiva de Alvalade. Também pululam no habitat rasteiro de outros
clubes, tolerados por dirigentes que não querem ter a matilha a morder-lhes os
calcanhares.
Talvez a explicação para tudo resida no facto de o jogador
ter deixado de ser o centro do universo. Os presidentes, os árbitros, os
diretores de Comunicação, as claques, os advogados, os comentadores televisivos
que fuçam no lodo, todos ganharam uma supremacia mediática que claramente não
deviam ter. E com isso se foi minando o terreno da cultura desportiva. E com
isso se foram moldando novas gerações de rancorosos. Basta assistir a um jogo
de futebol das camadas jovens para se ter uma noção. A Liga, a Federação e o
Governo podem ensaiar novos murros na mesa. Acabarão apenas por acumular
feridas nesse permanente exercício de contemporização inconsequente. O ódio no
futebol já causou a morte de adeptos. Mudou alguma coisa? Não. Agora foram
atacados jogadores e treinadores. Vai mudar alguma coisa? Infelizmente, não.
Pedro Ivo Carvalho in “Jornal de Notícias” – 16/5/2018