Na área sob influência do Alqueva é cada vez mais difícil
conciliar culturas intensivas com a salvaguarda do património.
A preparação de um terreno para plantação de olival super
intensivo destruiu, em meados de Março, boa parte de um dos mais importantes
“recintos de fossos” da pré-história portuguesa, na freguesia da Salvada,
concelho de Beja. Apesar de estar inscrito no Plano Director Municipal (PDM) de
Beja como área de sensibilidade arqueológica, este local não se encontra
classificado. Na área sob influência do Alqueva é cada vez mais difícil
conciliar culturas intensivas com a salvaguarda do património, seja
arqueológico ou paisagístico.
Como era costume aos fins-de-semana, J.P. [iniciais de
uma testemunha que solicitou o anonimato] fazia uma caminhada pelos arredores
da Salvada, seguindo o percurso habitual junto a uma pequena linha de água. Foi
então que observou, surpreendido, que “estavam a lascar o terreno” no sítio
identificado por “Salvada 10” ,
onde sabia que se encontravam vestígios arqueológicos, relatou ao PÚBLICO.
Plantar oliveiras sobre um recinto ritual com cinco mil
anos
As máquinas “surribavam” (lavra profunda) o solo, para
plantar um olival na Herdade Monte da Igreja, deixando expostos materiais
arqueológicos. O morador deduziu que certamente “os homens [trabalhadores]
desconheciam que o local escondia um grande recFoi precisamente esse
conhecimento prévio, adquirido durante uma Caminhada de Cultura organizada pela
União de Freguesias de Salvada e Quintos, em Agosto de 2015, que o alertou para
as consequências do impacte que estava a ter a “surriba” nos vestígios
arqueológicos. Naquele ano, o arqueólogo Miguel Serra conduziu algumas de
dezenas de residentes na freguesia ao local para que identificassem um recinto
de fossos e a presença de uma grande mancha de materiais pré-históricos.
Foi através dos residentes que Miguel Serra tomou
conhecimento e alertou a Direcção Regional de Cultura do Alentejo (DRCA). Nos
esclarecimentos prestados ao PÚBLICO, a responsável da DRCA, Ana Paula
Amendoeira, diz que os seus serviços enviaram dois arqueólogos e constataram
que tinham sido já realizadas “consideráveis movimentações de terras para
implantação de sistemas de rega”. A intervenção estendeu-se a uma “vasta área
confinante com o limite sudoeste da aldeia da Salvada, afectando a zona onde se
implanta o povoado da Salvada 10 (com cerca de 18 hectares ), sítio
arqueológico referenciado no PDM de Beja, e a necrópole (da Idade do Ferro)
Salvada 11” .
A intensa mobilização de solos deixou “visíveis em
diversos pontos do terreno, materiais arqueológicos, nomeadamente fragmentos de
cerâmica manual”, acrescenta Paula Amendoeira.
Foi precisamente esse conhecimento prévio, adquirido
durante uma Caminhada de Cultura organizada pela União de Freguesias de Salvada
e Quintos, em Agosto de 2015, que o alertou para as consequências do impacte
que estava a ter a “surriba” nos vestígios arqueológicos. Naquele ano, o
arqueólogo Miguel Serra conduziu algumas de dezenas de residentes na freguesia
ao local para que identificassem um recinto de fossos e a presença de uma
grande mancha de materiais pré-históricos.
Foi através dos residentes que Miguel Serra tomou
conhecimento e alertou a Direcção Regional de Cultura do Alentejo (DRCA). Nos
esclarecimentos prestados ao PÚBLICO, a responsável da DRCA, Ana Paula
Amendoeira, diz que os seus serviços enviaram dois arqueólogos e constataram
que tinham sido já realizadas “consideráveis movimentações de terras para
implantação de sistemas de rega”. A intervenção estendeu-se a uma “vasta área
confinante com o limite sudoeste da aldeia da Salvada, afectando a zona onde se
implanta o povoado da Salvada 10 (com cerca de 18 hectares ), sítio
arqueológico referenciado no PDM de Beja, e a necrópole (da Idade do Ferro)
Salvada 11” .
A intensa mobilização de solos deixou “visíveis em
diversos pontos do terreno, materiais arqueológicos, nomeadamente fragmentos de
cerâmica manual”, acrescenta Paula Amendoeira.
Os proprietários foram identificados e notificados pela
DRCA para suspender a intervenção para que fosse avaliada “a extensão dos danos
e ponderadas as medidas correctivas” com a indicação de que a “inobservância de
providências limitativas decretadas constitui crime”. Contudo, Paula Amendoeira
refere que desconhece “se os proprietários tinham conhecimento do valor
patrimonial da área intervencionada”, referenciado no PDM de Beja com um valor
arqueológico elevado.
Nestas circunstâncias, significa que “qualquer tipo de
intervenção relacionada com infra-estruturas, incluindo as de rega (...),
actividades agrícolas e florestais (...), se implicarem impactos significativos
ao nível do subsolo, deve ser precedida de trabalhos arqueológicos de
caracterização e diagnóstico”. A directora regional conclui que “não foram nem
estão a ser aplicadas as medidas previstas no PDM havendo por isso uma violação
do mesmo”.
Contudo, a Câmara de Beja alega que desconhecia a
intervenção no Salvada 10. Vítor Picado vice-presidente da autarquia garantiu
ao PÚBLICO que os serviços municipais “não receberam qualquer pedido para a
plantação do olival nem para a instalação do sistema de rega??.
Face à denúncia, a fiscalização municipal foi enviada e
confirmou que o tipo de intervenção observado consumava uma alteração do uso do
solo que “não estava de acordo com a planta de ordenamento, naquilo que se
refere à plantação de olival intensivo em áreas agro-silvo-pastoris” acrescenta
Vítor Picado. Como os trabalhos foram efectuados sobre um sítio arqueológico
com grau de protecção elevado, esta condição implica a “obrigatoriedade de
acompanhamento arqueológico quando há intervenções no subsolo”.
No entanto, a autarquia, confrontada com os critérios existentes
no ordenamento do espaço agrícola e ao tipo de intervenção, concluiu que o
agricultor que mobilizou o solo “não necessitava de consultar a Câmara de
Beja”. Assim sendo, admite o autarca, a intervenção no sítio arqueológico da
Salvada 10 “não poderia ter sido previamente detectada”, acrescentando que o
município não tem capacidade para garantir a fiscalização do património em todo
o concelho. Mesmo depois de confirmada a infracção, o vice-presidente reconhece
que a câmara “não tem competência para exercer as medidas sancionatórias”.
Perante o avolumar de contradições, a comunicação à
Direcção Regional de Agricultura do Alentejo aguarda resposta.
Perplexo com a situação ficou, igualmente, Bruno Cantinho
sócio gerente da empresa que procedeu à “surriba” no sítio arqueológico da
Salvada 10, e que garantiu que foi o PÚBLICO o primeiro a informá-lo de ter
colocado máquinas num sítio onde há património arqueológico. “É a primeira vez
que alguém me fala que ali havia condicionantes” afiança.
“Fizemos apenas o que a lei nos permite ou seja: para
plantar olival não necessitamos de autorização”, até porque o espaço
intervencionado “sempre foi trabalhado desde que se faz agricultura no local”,
assinala. Mas assegura que a intervenção efectuada na Salvada 10 implicou
rasgos na terra que “não ultrapassaram os 30/40 centímetros. Apenas alterámos a
morfologia do terreno”, observa.
Sítio protegido pela EDIA é destruído pelo regadio
A Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do
Alqueva (EDIA) foi alertada no início da década pelo arqueólogo António Valera
para a existência de um importante recinto de fossos junto à freguesia da
Salvada, com quase 20
hectares de área. O sítio arqueológico ia ser
atravessado pela rede de rega do circuito hidráulico Baleizão-Quintos.
Sensibilizada pela importância do achado, a EDIA alterou
o traçado da rede de rega para manter intacto o recinto de fossos da época
calcolítica. Decorridos poucos anos, boa parte da estrutura arqueológica foi
arrasada pelas máquinas que abriram sulcos no solo para plantar olival
superintensivo, alegando o autor da intervenção desconhecer o que ali se
encontrava.
Mas não foi por escassez de informação que a destruição
do sítio da Salvada 10 aconteceu. As instituições oficiais, Câmara de Beja,
Direcção Regional da Cultura do Alentejo e ministérios da Agricultura e do
Ambiente, tinham conhecimento do valor do sítio.
Premonitório foi o alerta deixado em 2011 pela Comissão
de Avaliação de Impacte Ambiental do Circuito Hidráulico de Baleizão-Quintos
que realçava o “grau de destruição observado nos sítios arqueológicos
localizados em áreas de olival intensivo, recentemente plantado e recorrendo a
métodos que alteram significativamente a morfologia da paisagem bem como a
orografia”.
Os técnicos alertaram para a mobilização do solo que iria
ocorrer na última etapa de construção para a implementação da rede terciária de
rega (que fica a cargo dos proprietários).
Desconhece-se, na sua real dimensão, o que aconteceu ao
património arqueológico nos cerca de oito mil hectares de solos agrícolas, no
bloco de rega Baleizão-Quintos, onde as equipas do Impacte Ambiental registaram
193 ocorrências de âmbito arqueológico.
O número de registos patrimoniais identificados pelo
estudo permitiram constatar a existência de “uma elevada densidade ocupacional
na Pré-História e época romana, destacando-se os materiais atribuídos ao
Paleolítico, detectados na envolvente da povoação de Salvada, e as vinte villae
romanas”.
No Anuário Agrícola publicado pela EDIA, as culturas de
olival, vinha e mais diversas árvores de fruto somam, no seu conjunto, quase 40
mil hectares de área de regadio, boa parte delas em áreas de grande importância
arqueológica.
O paradoxo é que a EDIA é obrigada a fazer estudos de
impacte ambiental (EIA) nas intervenções que faz, mas estes não são impostos
quando se surribam centenas e até milhares de hectares para plantar olivais.
Este tipo de “operação provoca um nível de mobilização do solo muito mais
acentuado do que a instalação da rede de rega do Alqueva”, refere ao PÚBLICO o
arqueólogo Miguel Serra.
“Corremos o risco de não ficar com nada para a mostra”,
sublinha o investigador, radicado em Beja, frisando que “não se sabe o que
aconteceu a centenas de sítios arqueológicos”, dado o vazio legislativo que
“impede a intervenção da tutela”, conclui.
Consternado ficou o presidente da União de Juntas de
Freguesia de Salvada e Quintos, Sérgio Engana. Pede às entidades competentes
para “preservar o que ainda é possível recuperar na Salvada” que a população já
via como um meio de fazer “reverter para a comunidade alguma riqueza e
conhecimento sobre a sua própria história”.
O PÚBLICO solicitou esclarecimentos ao Ministério da
Agricultura, que, até ao fecho desta edição, não respondeu.
Carlos Dias in "Público" - 23 de abril de 2017