(Onde se fala de
águias, ursos, lebres, tartarugas, mochos e mochas)
Numa destas tardes soalheiras o compadre Manel, professor
primário aposentado, acompanhou-me no passeio ao talefe.
A conversa solta, leve e descontraída, invariavelmente
recordava peripécias de uma sala de aula despida de apoios materiais, mas onde
a inteligência desse meu velho amigo ressaltava, em prol de uma pedagogia que a
todos beneficiasse dos seus conhecimentos.
Contava-me, entre risos, uma célebre ida ao Jardim Zoológico
durante a qual se regalou com os olhos extasiados dos pequenitos, face a tantos
e variados animais.
E de repente como quem não quer a coisa, perguntou-me:
- Oh compadre, já imaginou o que seria se um dia fosse
necessário um animal dar aulas aos animais?
- Uma escola de animais? – perguntei desconfiado.
- Sim, uma escola onde se ensinassem os animais para a sua
vida quotidiana. Imagine uma escola onde o professor fosse um mocho e tivesse
como alunos...sei lá, por exemplo: uma águia, um urso, uma lebre e uma tartaruga.
Imagine que se pretendia ensinar a todos eles, as
disciplinas de corrida, natação, voo e força.
Nesta altura imaginei o mocho de óculos sentado num ramo de
árvore esforçando-se por engendrar estratégias para ensinar a águia a nadar, o
urso a voar, a tartaruga a correr e a lebre a levantar pesos.
- Já imaginou compadre? Que notas teria a águia na corrida?
E o urso a voar? A tartaruga a fazer força e a lebre a nadar?
O mocho professor certamente daria uma boa nota e três más
notas a cada um, e se o regulamento dessa escola estabelecesse que seriam
reprovados com três negativas, todos eles reprovariam.
A lebre viveria triste por lhe terem dito que não sabia
voar; a águia frustrada por não saber nadar; o urso infeliz por ser lento na
corrida e a tartaruga choraria por não ter força nos seus membros.
O mocho professor seria infeliz por não ter conseguido os
seus objectivos.
- Livra, compadre! Ainda bem que os animais não têm escola –
desabafei.
- Mas... têm-na os nossos meninos! –, respondeu ele,
baixinho, quase que a medo, como se me tivesse dito algo de subversivo.
Sentei-me num tronco junto ao talefe, a pensar nas escolas
deste país, onde muitas vocações são cortadas por exigências de médias de 19 ou
20 valores em todas as disciplinas.
Onde os melhores? Que melhores? São seleccionados por
critérios que exigem a meninos e meninas diferentes, que sejam igualmente
excelentes numa dúzia de disciplinas.
Onde os adultos, fazendo o papel de mochos e mochas,
sujeitos a normas, critérios, programas, objectivos, tentam entrar nos meandros
da memória dos jovens, dezenas de milhar de palavras novas, milhares de
conceitos e de estruturas.
Quantas angústias e tristezas ultrapassadas, se, na vida dos
humanos, utilizássemos os conhecimentos da mãe Natureza.
Ah! É verdade, Einstein reprovou nos exames de admissão à
universidade. Saramago não frequentou a faculdade de Letras e segundo creio, o
celebrado pintor naif nisense Augusto Pinheiro não frequentou a escola de
Artes.
Já houve um tempo no mundo, sem escolas. Mas, no mundo de
hoje é impensável a sobrevivência sem passar pela escola. Importa é que se diga
que há que repensar a escola. Nomeadamente o acesso à formação de acordo com os
interesses manifestados e não por avaliações feitas por mochos obedientes, que
pretendem igualar águias com lebres ou ursos com tartarugas.
- Está a arrefecer o tempo!, ouvi o compadre Manel, velho
mocho sábio, dizer-me.
Com a ajuda da bengala, levantei-me, apoiei-me no braço do
compadre e viemos conversando sobre a pescaria aos bordalos que se avizinha.
Zé de Nisa – Jornal de Nisa nº30 - 30 Março 1999