10.1.17

OPINIÃO: Duas ou três coisas sobre Mário Soares

Mário Soares, ex-Presidente da República, falecido no passado sábado, foi pai de João e Isabel Soares. Não é “pai” de mais ninguém ou coisa nenhuma. É fundador da Aliança Socialista Portuguesa, mais tarde Partido Socialista Português, o último P a ser retirado da designação, para não se confundir com PSP – Polícia de Segurança Pública.
Não nutro alguma predilecção especial por Mário Soares, reconhecendo nele, embora, qualidades e defeitos, mais aquelas do que estes, que o tornaram num político e estadista de referência, a nível nacional e internacional. Não alinho, por isso, com o coro que por aí anda a querer endeusá-lo e colocá-lo no pedestal de “pai da Democracia”.
Por duas razões. A primeira, é que a Democracia não tem “pais”. Foi construída por todos aqueles, filiados ou não em partidos (clandestinos, durante a Ditadura) que lutaram e muitos morreram, para que surgisse a radiosa manhã de 25 de Abril. Se tivéssemos que “nomear pais” para o regime instaurado com a “Revolução dos Cravos”, destacaríamos, em primeiro lugar, os “capitães de Abril” e o Movimento das Forças Armadas. Mas a história, portuguesa, da luta contra a Ditadura salazarista-caetanista, começou muito antes, logo após, aliás, o movimento de 28 de Maio de 1926, intensificando-se nos anos 30, com a promulgação da famigerada Constituição de 1933.
Quantos trabalhadores, sindicalistas, marinheiros, soldados, intelectuais não foram presos, deportados, assassinados, privados das liberdades fundamentais, afastados, compulsivamente das suas actividades profissionais, apenas por não seguirem a “doutrina da ditadura”?
Humberto Delgado, Norton de Matos, Rui Luís Gomes, Mário Sacramento, Dias Coelho, Sá Carneiro, Miller Guerra, Sarmento Pimentel, Álvaro Cunhal, Bento Gonçalves, Salgado Zenha, Otelo, Sottomaior Cardia e tantos, tantos outros, o que foram? “Avós”, "afilhados", "tios e sobrinhos" da Democracia?
O Alentejo pode orgulhar-se de ter um seu filho, como uma figura ímpar da Democracia e da Liberdade. Arriscou a sua vida, a carreira militar, a vida familiar. Tudo. Em prol de um bem maior: a Liberdade e a Democracia para os seus concidadãos e compatriotas.
Chamava-se Salgueiro Maia e tal como Catarina Eufémia, o Alentejo o viu nascer. Morreu ainda novo. Não reivindicou para si e para os seus, regalias e mordomias. Aliás, algumas a que por mérito próprio tinha direito, foram-lhe sonegadas.
2 - Admiro em Mário Soares a coragem e determinação com que se bateu pela Descolonização e pela entrada de Portugal na CEE, embora nesta questão, sem respeitar uma das normas mais elementares de um regime democrático: a consulta, em forma de referendo, à população do país.
No caso da Descolonização, por muitos tida como “exemplar” e por outros o seu contrário, Mário Soares foi ágil, pragmático e astuto. Conhecia o contexto histórico em que se movia. Eu estava na Guiné-Bissau – que tinha declarado a sua Independência, de forma unilateral, meses antes, em Setembro de 1973.
Spínola e a linha “spínolista” eram contrários à independência das colónias. Defendiam a autodeterminação e, se possível, o domínio neo-colonial.
Soares, percebeu, que tinha de ser rápido na definição da política colonial e concluir, com êxito, um dos desígnios do Programa do MFA: o segundo D, Descolonizar.
Timor ficou para trás – resolveu-se com sangue, suor e lágrimas, anos mais tarde.
A Guiné-Bissau fez a sua “Descolonização” no terreno. Nos primeiros dias de Maio havia uma delegação do PAIGC na principal avenida de Bissau, a dois passos do Palácio do Governador. Estive lá, fardado, uma “aventura” de que não medi as possíveis consequências, mas de que não me arrependi. Outros, muitos com patentes mais altas, alferes e capitães, estabeleceram por todo o território, contactos com o PAIGC e vice-versa, de que resultaram o cessar-fogo e o fim dos combates. Ficou nas mãos dos políticos o reconhecimento oficial de uma situação que já o era, de facto.
Moçambique tornou-se independente em Julho de 1975. Angola foi mais complicado, por várias razões. Três movimentos “independentistas”, um território rico, muitos interesses instalados que não queriam abdicar das suas prerrogativas.
Soares foi, vezes sem conta, apontado como “traidor”, “vendedor de pátrias” e outros nomes nada dignificantes. Cumpriu, neste caso e com distinção, o seu dever.
Não há “descolonizações exemplares”. Se o acto, opressivo, de colonizar – conquistar, ocupar, submeter ao domínio do invasor, explorar – é tudo, menos “exemplar”, por que deveria o seu inverso ser diferente?
A guerra colonial portuguesa (1961-1974) deixou um cortejo infindável de mortos, feridos, estropiados, marcados física e psicologicamente para o resto das suas vidas.
Estes, vítimas de uma guerra injusta e de um regime sanguinário, tal como os prisioneiros do Tarrafal, Peniche, Aljube, Caxias, S. Nicolau, Angra do Heroísmo, também são, por direito próprio, “pais da Democracia”. Lutaram, sofreram na pele e na alma, torturas, sevícias, espancamentos e até a morte. Não se renderam.
São estes, a par de tantos outros, os nossos heróis contemporâneos.
Respeitemos a morte de um grande português. Prestemos-lhe as honras, a homenagem, a gratidão e o respeito que merece. Mas, por favor, não façam de Soares um mito e muito menos um Deus ou um Rei.
A Democracia é o governo do Povo, escolhido pelo Povo. Mário Soares foi um, de entre tantos, que se dedicaram à causa pública.                                                                                                       
Deixo-lhe o meu tributo e homenagem com uma canção do José Carlos Shwartz, cantor guineense e falecido prematuramente, que a guerra não deixou ser meu amigo...
Mário Mendes