3.11.16

OPINIÃO: 10 Anos do semanário "Alto Alentejo"

A uma criança com idade de Jornal
Antoine chega a casa para o almoço e mal entra na maison diz para a mulher: Isabel, tens aqui o correio!
Cartas de Portugal e de serviços franceses, mas de entre o volume da correspondência logo descobre um emaranhado de folhinhas com um cabeçalho a verde.
- Chegou o jornal, temos visitas de Nisa!
Estende a mesa para a refeição do marido e maquinalmente já não despega daquelas folhinhas carregadas de notícias e de saudades da terra distante.
- Olha aqui, Antoine!. Já temos água com fartura e dizem que este Verão já abrem as piscinas. Já viste o que é? Acabaram-se os problemas com os netos, já temos onde os levar quando formos de férias. E fala aqui da restauração da igreja do Pé da Serra!
- Pé de Serre? Onde fica? – indaga o marido.
- Não te lembras? É aquela petit village muito branquinha que se vê do cabecinho da Senhora da Graça. Era a terra do meu avô e nós fomos lá pelas festas e dançámos no largo...
Ah! Oui! Beaucoup de gens, trés simpatique. J´aime Pé de Serre e Nisa.
Antoine termina a refeição e prepara-se para retornar à usine, em Toulouse. Despede-se da esposa e diz-lhe, num tom compreensivo: Ó Isabelle, mas tu não almoças?
Antoine sabia de antemão que nos dias da chegada do jornal, o almoço podia esperar, por vezes até ao jantar. A leitura, em português, as notícias do seu torrão natal, eram um afago para o estômago e um conforto para a alma que Isabel não podia desperdiçar.
Foi Isabel quem nos contou esta história. Podiam ser outras as pessoas, outros os lugares e os jornais. Portalegre, Fundão, Castelo de Vide, o país real espraiou-se pelos confins do mundo, desde Sidney a São Francisco, de Montreal a Paris, de Díli ao Maputo e a Luanda.
No meio e sujeito da história, o jornal. O veículo da mensagem, o portador da notícia alegre e do acontecimento triste. Da novidade e da história. Da crítica e da análise. Do confronto – que não confrontação – de ideias e de propostas para um melhor porvir.
Hoje temos a internet, as redes sociais, a comunicação a todo o vapor, em doses maciças e repetitivas, tão repetitivas que por vezes se torna difícil separar o trigo do joio. O jornal impresso perdeu muito do seu antigo fulgor e muitos lhe destinavam, até, o prenúncio da morte.
Sei, por experiência própria, o que é fazer, “viver”, um jornal. Vivi, como parte de mim, um jornal durante mais de dez anos, a idade de criança, ainda, que o “Alto Alentejo” perfaz.
Sei do bulício, da hiperactividade, da agitação, do tempo febril que antecede a elaboração e a saída de cada edição. Quem lê um jornal, durante 15 ou 20 minutos e depois com gesto de enfado o atira para um canto, não sonha sequer, com as centenas de quilómetros feitas para registar as fotos, os comentários, ouvir os intervenientes de cada história e de cada notícia que o jornal leva aos seus leitores. Está longe de imaginar quantos telefonemas, quantas discussões na redacção e quantas dúvidas são aclaradas para que a notícia, ou os factos que lhe dão suporte e credibilidade, sejam publicados no respeito rigoroso pelas leis.
Ontem – num passado já um pouco distante – a imprensa, na sua maioria, resumia-se a boletins paroquiais, escritos pelos párocos ou pela gente letrada da terra. Não poucas vezes, a escrita era gongórica, destinada a um público sui generis, com conhecimentos de latim. Servia os poderes dominantes, centrais e locais, geralmente, alinhados. O povo, iletrado, com baixa escolaridade e sem proventos para as necessidades mais elementares, não tinha acesso aos meios de comunicação escrita.
Poema do jornal
O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.

Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.       
Carlos Drummond de Andrade
 Com o 25 de Abril a situação inverteu-se. Recuperaram-se as liberdades fundamentais, entre estas a liberdade de imprensa, apareceram muitos títulos de jornais – muitos dos quais desapareceram num ápice – a imprensa regional ganhou um novo ânimo, quer pelo surgimento de novos projectos assentes numa base empresarial e profissional e suportados por uma nova geração de jornalistas saídos das universidades.
O saber escrever, a boa vontade, o voluntarismo, que continuam a imperar em muitos dos jornais regionais, deu lugar à especialização e á profissionalização.
Profissionalização da função que, em raras situações e exemplos (a não ser nos grandes grupos editoriais), corresponde a um vencimento ou salário inerentes às responsabilidades que lhes estão cometidas.
O “Alto Alentejo” completa 10 anos de existência e profícua actividade. É ainda uma criança, mas já uma criança feliz. O Manuel Isaac, seu director e a quem endereço os meus parabéns, extensivos à excelente equipa que comanda, pediu-me um texto pequeno para esta efeméride. Já me alonguei demasiado e não disse metade do que pretendia explanar.
Há-de haver outras oportunidades. Um grande abraço e votos de uma longa vida em prol, sempre em prol do Alto Alentejo.
Quando a imprensa não fala, o povo é que não fala. Não se cala a imprensa. Cala-se o povo. - William Blake
 Mário Mendes