Mestre Vicente, carpinteiro
de seu ofício, um dia meteu-se a estatuário e, em vez de arrancar à montanha a pedra tosca,
bruta, dura e informe, foi-se ao tronco duma figueira anosa e trouxe para casa
a matéria prima em que depois iria corporizar a sua ideia...
Lança mão da enxó e, “depois
que desbastou o mais grosso”, toma o formão, a grosa e outra utensilhagem e
começou a esculpir... o S. Martinho.
Alguns dias depois, a casa
do Santeiro era uma nova Meca para os sectários da religião de Baco, e irmãos e
irmãs acorriam em peregrinação a ver e a admirar o orago da confraria, que os
sucessivos e aprimorados retoques do artista iam tornando cada vez mais
venerável.
Até que, em 10 de Novembro
daquele ano, o S. Martinho, simbolicamente ajaezado e repimpado sobre condigno
andor, foi conduzido, através das ruas do burgo, numa procissão que deixou a
perder de vista todas as realizadas até então.
Naquela noite, que o
veranito do festejado tornara deliciosamente amena, à luz de archotes e balões
venezianos, uma enorme multidão de devotos, em vozearia ensurdecedora, cabeças
estonteadas pelo vinho novo, acompanhou o Santo, cantando em berros avinhados.
- Era o vinho meu Deus, era
o vinho
Era o vinho que eu mais
adorava...
Esta adoração, concretizada
em visitas a todas as capelas do itinerário, resultou, como era de prever, em
um sem número de cardinas...
E sempre aos ombros dos mais
conspícuos confrades, o cabeça de pau, que os archotes laivavam de vermelho, lá
recolheu de novo a casa de Mestre Vicente.
Foi isto não sei há quantos
anos. Agora, a propósito, ocorre-me, nesta época de prova de vinho novo, um
episódio sucedido numa outra procissão...
Ainda o pai do S. Martinho,
como ficou conhecido o Santeiro, não
tinha arrancado à sua bossa artística a criação que o celebrizou.
Como não havia Santo, era
costume alçupremar a uma padiola um dos mais afamados bebedores. Naquele ano
fazia de S. Martinho um indivíduo cujo nome não vem ao caso e que, tempos
depois, me referiu as impressões da sua odisseia através das artérias da
povoação.
Dizia-me ele: “Eu ia lá que
nem um cacho e nem sei como me aguentava na padiola; mas os que me
transportavam não iam melhores”. E contava que, por entre o alarido do
acompanhamento, percorreram quase toda a vila; mas no trajecto deu-lhe a
bebedeira para chasquear com os irmãos que com ele carregavam, umas vezes
atirando-lhe um arre estimulador, outras fazendo-os suspender a marcha com um
chô arreliante.
Quando iam chegando ao poço
do Rossio, no local onde hoje se ergue o novo edifício do correio, poço com uns
sete ou oito metros de profundidade, um dos da padiola, talvez abespinhado por
algum remoque mais incisivo, diz para os outros:
- Ó rapazes, pregamos com
ele dentro do poço!...
E ele então, com um sorriso
de quem escapou de boa:
- Ó Sr. F. eu não sei como
aquilo foi: passou-me a bebedeira de repente. Se não salto da padiola tão
depressa, os malditos atiravam-me para o fundo! Não ganhei para o susto!
Mas... Voltemos a Mestre
Vicente.
O pobre homem, desde que fez
o Santo, não mais teve uma hora de ventura.
Naturalmente supersticioso
como todo o portuguesito, disse lá para consigo:
- O S. Martinho, depois de
muitos tombos e maus tratos em várias patuscadas, não deve estar satisfeito.
Vou restaurá-lo, aperfeiçoá-lo e certamente a sorte mudará.
E assim fez. Mas a macaca
continuava, o cabeça de pau dava-lhe enguiço e o homenzinho resolveu livrar-se
dele duma vez para sempre. E ofereceu-o aos irmãos de Póvoa e Meadas, os quais
uns dias antes da festa do Patrono, vieram buscá-lo entre ruidosas e
significativas demonstrações de regozijo. Pois vejam os leitores o que
é o azar! À hora em que na Póvoa, o Santo contribuía para atenuar a crise
vinícola, fazendo vibrar a população na alegria e no bulício duma festa
popular, Mestre Vicente caía dum andaime e dava entrada no hospital de Nisa,
cruciado de dores e mais uma vez amachucado pela sua negra sina.
Era caso para dar ao diabo o
boneco de figueira, se não o tivesse
já dado aos da Póvoa!...
J. Figueiredo – In “Correio
de Nisa” (1945)