Desde há muitos anos (anos que acordaram musas), mas sempre
com o mesmo fervor contemplativo, que nos detemos na visão magnífica deste
pequeno burgo ou lugar da Serra de São Miguel, que se inclina como que em prece
ou perene preito à montanha redonda que lhe absorve, em místico gigantismo, o
fronteiro horizonte.
Pé da Serra só porque situada a aldeia no sopé ou
falda-leste do grande morro? Só por isso? E quanto à proveniência dos seus
habitantes?
Ninguém, povo ou grupo humano, se radica em determinado
ponto geográfico, sem causa mais ou menos justificante e até mesmo de concreto
teor. Sabe-se que muitas aldeias ou lugarejos nasceram por progressiva ou
ampliada fixação dos seus nativos, devido a propriedades que lhes asseguraram
certa fonte de sustento necessário à vida, numa altura em que o mercado de
trabalho era circunscrito a espaços reduzidos ou a escassos metros medidos a pé
descalço. A era do quilómetro chegaria muito mais tarde e só para muito poucos,
os que dispunham da roda e do cavalo...
Cabem aqui casos como os de Monte Claro (Monte do Claro),
Montes Matos (Montes dos Matos), Chão (da Velha), Montes (do Duque) e do Prado,
que obviamente poderão derivar dos nomes de antigos patrões, ou principais
proprietários aí existentes.
Porém, com o Pé da Serra o caso não será idêntico, dado que
o nome não tem qualquer referência ou identidade com pessoa, propriedade rural
ou mesmo urbana.
As musas que acordámos até diziam:
Rostos belos, olhos, olhos,
Como jamais ainda vira
Nascidos de entre os abrolhos
Que a mão de Deus repartira...
Mas, para tudo há uma história e não deixaremos de contar
esta aos nossos leitores. Facto, lenda, ou simplesmente imaginação?
Com certeza que, na Torre do Tombo, não deve haver nada
parecido com isto.
Por várias vezes, ao longo da vertiginosa meninice, ouvimos
contar a familiares, muito ligados à obra esforçada e grandiosa (feita a braço
de homem) que foi a abertura de canais e túneis da Hidro Eléctrica do Alto
Alentejo, que o povo do Pé da Serra, em homens e mulheres, foi dos que maior
contributo deu para a execução física desse ousado projecto de progresso e
modernidade para a época (2ª vintena do século passado).
Nessa altura, um “exército” de trabalhadores, comandado pelo
Engº Filipe dos Santos que teria combatido em La Lys poucos anos antes, “batia-se” arduamente
nos "cabeçurros" da Senhora da Graça, desbravando um novo caminho para a água do
velho Nisa que agonizava entre as suas milenárias barreiras, em patriótico
holocausto.
Numa pausa do trabalho, ensopados embora os lenços no suor
da refrega das picaretas, sempre havia algum tempo para contar uma anedota
brejeira ou rememorar o passado, face à transformação da realidade presenciada.
E foi assim que, duma vez, falando-se “nos de Nisa” e “nos
do Pé da Serra”, alguém conhecido por Miguéns terá dito:
Os povos de Nisa e do Pé da Serra são o mesmo povo. E desde
que Nisa desapareceu daqui. Muitos foram para onde hoje estão, na outra Nisa. E
outros, poucos, foram para ali, para “ao pé da Serra”, ouvi muitas vezes o meu
avô, que era pastor, contar isso. Fugiram do assalto, eram uns trinta ou
quarenta em homens e mulheres e, o “mais importante” mandou que fossem para a
Serra.”
Parece que o homem mais importante e que mandava quis apenas
dizer: instalar junto da Serra. Como, aliás, ainda hoje em Nisa se diz:
- And´aqui pró pré de mim.
Lógica histórica terá esta “história” quiçá com testemunho
passado desde os tempos do Rei Trovador.
Mas será facto, lenda, ou só produto de bucólica imaginação?
Carlos Franco Figueiredo –Notícias de Nisa – 14/7/1997