10.8.22

OPINIÃO: Ardósia mágica

 
Atribuir todas as dificuldades do momento a um motivo único era já uma prática na Roma Antiga. Nessa época, Catão, o Velho, terminava todos os seus requisitórios, qualquer que fosse o seu objecto, reclamando que Cartago fosse destruída. Mais recentemente, em 1984, a televisão pública francesa confiou ao actor Yves Montand a apresentação de um programa intitulado «Vive la crise!» («Viva a crise!») que era destinado a fazer com que os franceses compreendessem que todos os seus problemas resultavam do Estado providência (1). Uma purga social serviria, portanto, de remédio universal. Depois, o terrorismo tornou-se a obsessão quotidiana, a nova ardósia mágica que permitia apagar o resto. Na hora que se seguiu aos atentados de 11 de Setembro de 2001, funcionários britânicos receberam, aliás, esta mensagem da conselheira de um ministro: «É um excelente dia para fazer aprovar discretamente todas as medidas que temos de tomar». Bastaria atribuí-las à «guerra contra o terrorismo», inclusive, como é evidente, quando não tivessem qualquer relação com Ossama Bin Laden. Dá-se mais uma volta no carrossel e agora, na Rússia, todos os problemas existentes têm forçosamente origem nas manigâncias do Ocidente, enquanto no Ocidente é sempre «culpa de Moscovo».
É o caso da queda do nível de vida. O presidente Joe Biden atribui infatigavelmente à «taxa Putin» sobre a alimentação e a energia o forte aumento da inflação nos Estados Unidos. O seu homólogo Emmanuel Macron também afirma que as dificuldades actuais dos seus compatriotas mais pobres se explicam por uma «economia de guerra». Assim sendo, porém, há quarenta anos que os franceses não conhecem a paz. Porque o fim da indexação dos salários aos preços remonta a 1982, quando François Miterrand e o seu ministro Jacques Delors ofereceram às empresas privadas a prenda mais gigantesca que jamais haviam recebido do Estado. Em contrapartida, desde então os trabalhadores não montaram mais nenhuma árvore de Natal, pois o seu poder de compra sofreu um corte duradouro. E, no entanto, nessa altura a Ucrânia e a Rússia ainda formavam um mesmo país, e Putin ainda não tinha saído da sua cidade natal, Leningrado… A «economia de guerra» limitar-se-á, em suma, a prolongar e acelerar o empobrecimento dos mais pobres, ao mesmo tempo que os lucros do índice bolsista francês CAC 40 (160 mil milhões de euros em 2021) acaba de destruir um recorde histórico estabelecido há quinze anos. Em suma, tudo mudou, salvo a hierarquia mundial entre dividendo e salário. E a determinação dos governos de privilegiar o primeiro (ler, nesta edição, o artigo de Pierre Rimbert e Grégory Rzepski). Oligarcas de todos os países…
A ardósia mágica funciona também para a ecologia. Relançamento da produção de carvão, sacrifício do transporte ferroviário, fracturação hidráulica, poluição digital, deboche publicitário dos joalheiros na comunicação social e nas paredes: também nestas áreas, a vida continua. É, também aqui, «por causa de Putin»? O Estado vai, portanto, oferecer ventoinhas e garrafas de água aos mais pobres, descontos na gasolina aos que não fazem as suas compras de bicicleta. As «medidas de urgência» sucedem-se; as medidas urgentes vão ter de esperar
* Serge Halimi in Le Monde diplomatique - Agosto - edição portuguesa
(1) Ler Pierre Rimbert, «Il y a quinze ans, “Vive la crise”», Le Monde diplomatique, Fevereiro de 1999.

IMAGEM - O cerco - Cartoon de Henrique Monteiro