Os
ataques que vêm sendo feitos por forças de Direita e por grandes interesses
privados ao Projeto de Lei de Bases da Saúde em discussão na Assembleia da
República, o cerco montado à ADSE pelo cartel da indústria da saúde, as
propostas de Santana Lopes para que se crie um seguro para todos, a que se soma
uma hipotética iniciativa legislativa do PSD autorizando a transferência de
dados pessoais para as seguradoras, permitem-nos construir uma imagem do que
seria a saúde dos portugueses sem SNS e o que isso significaria de retrocesso
do país.
Alguns
dos inimigos do SNS solidário e digno para todos dizem que as forças de
esquerda pretendem instalar o monopólio do Estado na saúde. Isso é falso.
Primeiro, a Constituição da República consagra a sua existência, bem como a do
setor social. Segundo, como muito bem sabem os grandes investidores nos grupos
da saúde, o aumento da longevidade das nossas vidas e a possibilidade de vida
mais saudável, alimentarão muito negócio no setor. Não faltará espaço ao setor
privado - no seu papel de sistema complementar - para obter lucro.
O
risco iminente não é, pois, o de poder haver monopólio do Estado, mas sim o de
se estar a instalar o monopólio dos grandes grupos privados, que tem sempre uma
particularidade: assenta na privatização dos resultados e no compromisso de o
Estado socializar os custos.
Quando
foi criada, a ADSE convencionava serviços (ou cobria custos pessoais com saúde)
com uma rede de médicos de família profissionais liberais, que operavam cada um
por si, numa miríade de consultórios dispersos pelo país. Essa medicina de
Joões Semana praticamente já não existe. Hoje, no seu lugar existe um cartel de
grupos da indústria de saúde com profissionais assalariados que, contrariamente
aos profissionais liberais do passado, tem um enorme poder negocial. São os
seus músculos negociais que esse cartel decidiu agora exibir. O objetivo é
intimidar o Estado e os beneficiários da ADSE e assim obter condições
contratuais leoninas. Neste quadro, é lamentável ouvir-se pessoas da área do
PS, nomeadamente o presidente do Conselho de Supervisão da ADSE, criticarem de
forma desfocada o processo em curso e reclamarem que o Governo "chegue a
acordo custe o que custar". Sugerem assim, sibilinamente, que o Estado e
por consequência a ADSE sucumbam às pressões do cartel privado.
O
espetáculo dos últimos dias ajuda-nos a ver de que forma um sistema de saúde
alternativo ao SNS baseado em seguros, sejam eles públicos ou privados, pode
ficar refém de um cartel da indústria da saúde. Quem pudesse pagar teria acesso
(inclusive a luxos) e quem não pudesse e fosse subsidiado pelo Estado,
definitivamente passaria a ter acesso apenas a mínimos sem qualidade e sem
dignidade.
O PSD
("Público" de 13/2) parece pretender propor, também, que as
seguradoras tenham acesso a informação pessoal de saúde que hoje lhes está
vedada. Isto permitiria às seguradoras instrumentos para maximizar os lucros,
discriminando o preço, fazendo as pessoas saudáveis pagar pouco e as doentes
pagar muito. E, à boleia, apoderarem-se de outros dados respeitantes a modos de
vida e de consumo pessoais que lhes permitissem atribuir a cada pessoa uma
classificação ("rating") pessoal discriminatório nos preços.
Precisamos
de um SNS que mutualize os riscos de doença e distribua os custos de acesso por
todos, sem discriminar. A doença mais tarde ou mais cedo toca a todos e a
solidariedade é um valor que coletivamente deve ser assumido e, se necessário,
imposto. É preciso um SNS dotado de meios que lhe permitam assegurar, ele
próprio, parte do que atualmente é comprado à indústria da doença. A nova Lei
de Bases da Saúde, bem como os novos contratos com os privados no que diz
respeito à ADSE, tem de trazer capacidades novas para se acabar
progressivamente com a pilhagem e o atrofiamento a que o SNS foi sendo sujeito.
Os
cidadãos, para usufruírem do direito a acesso à saúde, jamais podem ser
considerados consumidores. O SNS tem de ser cada vez mais um serviço com forte
componente preventiva, até porque é aí que todos e o Estado podem ganhar muito.
E nessa os grupos privados estão muito pouco interessados.
Carvalho da Silva- Jornal de Notícia - 17/2/2019