Acabar com as touradas, com a tortura dos touros para
satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido.
A ideia de que ser a favor ou contra as touradas é uma
questão de liberdade de expressão é um absurdo. Ser a favor ou contra as
touradas é uma questão de civilização e, por muito que a palavra esteja gasta,
nós sabemos muito bem o que é. É o mundo frágil que nos faz viver melhor, mais
tempo, com menos violência do que no passado. É completamente frágil e
contraditório, muitas vezes anda para trás e poucas vezes anda para a frente,
mas representa o melhor da vida possível, feito por um olhar humanista sobre as
coisas, que inclui condenar, limitar, punir a violência.
É o mundo em que há direitos humanos, em que os homens e as
mulheres são iguais, é o mundo em que as mulheres e as crianças são protegidas
da violência doméstica, é o mundo em que o direito de viver de forma livre o
sexo é garantido, é o mundo em que a tortura, a pena de morte, o genocídio são
condenados, é o mundo em que há liberdade religiosa, de opinião, política,
etc., etc. Sim, é verdade que é também o mundo em que tudo isto não existe, mas
escolham. Pode não ser o mundo que temos, mas é o mundo que desejamos.
Os animais não podem ter “direitos” equiparados aos direitos
humanos, mas faz parte de uma sociedade humana que valorize a ética e combata
todas as formas de violência olhar para os animais com um sentimento de
especial proximidade que está para além da domesticidade. Os movimentos a favor
dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem
parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX. A ideia central era que o
modo como tratamos os animais era um sinal de como tratávamos os homens, a
crueldade contra os animais era um sinal de uma violência institucionalizada
que não se limitava aos animais, mas se estendia aos homens, mulheres e
crianças.
Não me estou a referir a nenhuma das variantes radicais
modernas dos direitos dos animais que fazem parte da moda dos nossos dias. Não
é isso, não tem que ver com aviários, nem com matadouros, nem com as mil e uma
formas de industrialização da produção de alimentos, algumas das quais ganhavam
em ser menos cruéis. Nem com a caça. A caça tem um valor económico, e tem um
papel no controlo das espécies, e é cada vez mais moldada pela lei de modo a
que o seu carácter lúdico seja subordinado a estas necessidades.
Tem que ver com as touradas. Podem dar as voltas que
quiserem, mas as touradas são a exibição pública da tortura de um animal, que é
esfaqueado para enfraquecer e depois, no caso das touradas de morte — que todos
os defensores das touradas desejavam poder ter sem limitações —, ser morto. As
touradas vivem do sangue, da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e
da morte. Podem ter todos os rituais possíveis, ter toda a “arte” de saracotear
à volta de um bicho, mas as touradas não são uma arte, são a exibição circense
de um combate desigual entre homens e animais, cuja essência é a sua tortura
para gáudio colectivo.
Não é um combate de iguais. Na verdade, os combates de cães
e de galos — proibidos não se sabe porquê à luz da permissão das touradas — são
muito mais um combate entre iguais do que o homem de faca e o touro sem armas a
não ser os chifres, que muitas vezes são embolados. Mas é o sangue e a morte
que fazem o espectáculo e, ao serem um espectáculo, são um sinal de barbárie.
O argumento da tradição também não é argumento. Se há coisas
que a tradição encobre é um vasto conjunto de práticas que felizmente hoje são
consideradas inaceitáveis, desde a violência doméstica à discriminação dos
homossexuais, à excisão feminina, à pena de morte, à legitimação da tortura. Se
aceitamos que a “tradição” por si só legitima a violência e crueldade, então
podemos voltar ao “cá em casa manda ela e quem manda nela sou eu” e toca de lhe
bater.
Os argumentos dos defensores das touradas são a versão
portuguesa dos argumentos da National Rifle Association nos EUA, que também se
identifica como uma “associação de direitos civis” e usa o argumento da
tradição para justificar uma sociedade banhada de armas e em que a violência
dos massacres é sempre culpa de outra coisa que não sejam as armas.
As histórias ridículas de como os defensores das touradas
“amam os touros” (sic), de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro
bravo” enobrece os campos do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de
tortura e morte como se esse fosse o seu destino teleológico, a cultura
machista da “coragem” perante os mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da
praça), devem pouco a pouco envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos
civilização. O mundo em que vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem
saiba história sabe que não há maneira de o tornar limpinho, higiénico,
pacífico, nem em séculos, quanto mais numa geração. Mas acabar com as touradas,
com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom
sentido. Porque senão vivemos na pior das hipocrisias em que matar ou tratar
mal um cão e um gato pode levar à prisão — e bem —, mas em que no meio de
cidades e vilas de uma parte do país podemos aplaudir a tortura, o sangue e a
morte.
Pacheco Pereira in “Público” – 17/11/2018
A Pega - Cartoon de Henrique Monteiro in http://henricartoon.blogs.sapo.pt